Da lonjura se fez perto

A cidade da Guarda recebeu a melhor prenda que alguma vez terá recebido pelo seu aniversário e o 824.º ano do sua fundação ficará nos melhores anais da história desta cidade da montanha beirã.

Foi em 2008 que escrevi para o semanário A Guarda um pequeno artigo sobre este missionário e linguista. Ocasional artigo e, sobretudo despretensioso, até porque as minhas fontes eram, à altura, muito limitadas. Então pretendia eu trazer à memória da cidade um ilustre egitaniense, evocando o quarto centenário da sua aventura além dos mares. Nesse ano completavam-se 4 séculos sobre a data em que um jovem estudante jesuíta, então com 21 anos, embarcava na Carreira da Índia rumo ao Oriente Extremo. O Japão parecia aguardá-lo, mas outros caminhos se abriram. O seu nome é Francisco de Pina. Ficou famoso, não no Japão, mas no Vietname. Foi de lá que veio a inesperada prenda de aniversário da Guarda, trazida por uma vintena de vietnamitas. Honra lhes seja feita.
Quando em 2008 escrevia o primeiro e incipiente artigo, que alguns dos leitores deste semanário poderão ter lido sem medirem bem a sua significância histórica, estava eu longe de imaginar que, em Novembro de 2023, seriam os vietnamitas os primeiros a homenagear Francisco de Pina na Guarda, na sua terra natal, com um monumento memorial trazido das terras calcorreadas por ele na actividade de missionário e linguista. Se estou certo, é um caso único. Não se trata só de homenagear um estrangeiro ali chegado do Ocidente distante. Trata-se de um povo que, reconhecendo-se devedor de um estrangeiro, oferece à sua terra natal um monumento escultórico criado por artistas vietnamitas com materiais próprios. O povo é o povo do Vietname, representado aqui por uma fundação específica de glorificação da escrita da língua vietnamita que Francisco de Pina trabalhou. E a terra natal é a pequena cidade de Portugal, a Guarda, cuja fama se estendeu para as lonjuras do Oriente.
O Padre Francisco de Pina embarcou há mais de 400 anos na Nau de Nossa Senhora do Vencimento do Monte do Carmo, completou a sua formação no Colégio de São Paulo em Macau, recebeu a ordenação sacerdotal em Malaca e logo foi chamado para a recém-criada Missão dos Jesuítas da Cochinchina, zona que corresponde à parte central do Vietname actual. Nunca mais veio à cidade onde nascera e regressou agora num barco esculpido em bronze por artistas vietnamitas trazido por mar do longínquo Vietname. A partir de agora, o P. Francisco de Pina ficará na memória histórica da Guarda e dos seus habitantes, materializado neste barco que o trouxe de regresso à sua cidade, deixando lá bem longe o nome da Guarda, escrito também ele em letras de bronze.
É assim que eu o entendo. No dia 26 de Novembro de 2023 Francisco de Pina regressou à sua Guarda trazido por aqueles que beneficiaram do seu trabalho realizado no primeiro quartel do século XVII naquelas longínquas terras. Caso único, que eu saiba, na história de Portugal e da Europa. Caso único na História dos Homens, tantas vezes avessos às emergentes virtualidades da interculturalidade. Caso único que é na História dos Homens, ele ganha foros de um símbolo. Símbolo de compreensão e diálogo entre culturas, entre linguagens e entre histórias.
Este barco escultórico é pluralmente simbólico. Ele representa a viagem deste homem da Guarda para o Oriente. Ele representa também as várias viagens, de Francisco de Pina no Oriente distante: de Goa para Macau, de Macau para Malaca, de Malaca para a Cochinchina. Ele representa, dramaticamente embora, o pequeno barco naufragado e em que tragicamente morreu a 15 de Dezembro de 1625. Mas agora o barco aqui está implantado nesta montanha da serra, que é a Guarda, trazendo, redivivo, o P. Francisco de Pina.
Um barco de bronze vietnamita emoldurado com o alfabeto latino trazido por um passarinho de nome Chim Lac com uma espiga de arroz no bico e com as pautas musicais imaginadas por Francisco de Pina como elemento didáctico para melhor se aprenderem os seis tons daquela língua tonal. Língua musical, dizia Francisco de Pina, que só a poderá aprender bem quem sabe música. E, na base da vela maior, o velho tambor Dong Son, símbolo da antiga civilização do Dai Viet. Vale a pena observar atentamente este monumento e interiorizar toda a simbologia que traduz. O espaço exterior da Biblioteca Municipal da Guarda ganhou mais esplendor com este monumento memorial da acção do P. Francisco de Pina no longínquo Vietname.
Um barco de bronze vietnamita que fala três línguas. Na parte central da vela maior, à direita, este pequeno texto, em português, vietnamita e inglês: «Esta estela, trazida de Quang Nam, Vietname, é símbolo do nosso reconhecimento para com o Padre Francisco de Pina (Guarda, 1586 – Hoi An, Vietname, 1625), inventor pioneiro do “Chû Quôc Ngû” (escrita vietnamita em alfabeto latino).»
Francisco de Pina, naufragado quando prestava serviço aos portugueses que se encontravam ancorados na ilha de nome Champeilô, ou simplesmente Cham, situada a poucas milhas da costa, não pôde saborear os desenvolvimentos da sua visão intercultural. Muito menos poderia saber que um dia o seu trabalho se iria traduzir na escrita de um país com mais de 100 milhões de habitantes. Também não pôde saber que o Vietname seria, no Séc. XXI, o segundo país com maior percentagem de católicos na Ásia Extrema, 7%. Mas verdade é que, se Francisco de Pina é evocado com um painel no adro da catedral de Da Nang, no Vietname, é porque ele está na base da Igreja do Vietname. Linguista e missionário o seu pioneirismo está na raiz de uma transformação comunicacional como está na raiz de uma Igreja pujante de vida que é a do Vietname.
A escrita vietnamita tradicional utilizava caracteres ideográficos tipo chinês. Francisco de Pina, para além de ser, como missionário, um dos pais da igreja vietnamita, foi pioneiro na transcrição romana daquela língua tonal. O assim chamado Chû Quôc Ngû é hoje a escrita da língua nacional do Vietname sendo, como tal, utilizada por 100 milhões vietnamitas. Caso único entre os países asiáticos, de que os vietnamitas sentem particular orgulho dadas as múltiplas vantagens que são reconhecidas a esta notação linguística: facilidade de aprendizagem, potencialidades na difusão da cultura, instrumento decisivo na democratização da educação. Por isso já ouvi dizer que o Chû Quôc Ngû é a conquista mais pura e duradoura do intercâmbio cultural euro-asiático na Humanidade.
Glória ao Vietname e honra à Guarda!
Aquando da sua morte em trágico naufrágio, o jesuíta P. António de Fontes, que à época vivia na mesma residência com Francisco de Pina e com ele aprendia a língua local, escrevia assim para Roma, referindo-se ao seu funeral: «uns lhe abriram a cova, outros alimparam e varreram o caminho para o cemitério e outros lhe negociaram e compraram à sua custa o caixão em que havia de ser enterrado. E depois do ofício e missa cantada, o acompanharam todos até à sepultura, levando às costas a tumba mais de vinte dos principais, e muitos mais o levariam, se tiveram onde pegar, querendo nisto mostrar o amor que lhe tinham.» As mais altas autoridades do reino, o Rei, o Príncipe e mandarins gentios, duma e doutra corte, enviaram sentimentos pelo trágico acontecimento, fazendo-os acompanhar, como foi o caso do Rei e do Príncipe, de contributo pecuniário para cera. Os cristãos de Cacham, a terra superiormente amada por ele, «por sobre a sua sepultura como se costuma nesta terra, fizeram uma capelinha de excelente madeira.» Boa razão terá tido o P. Alexandre de Rhodes ao escrever: «Submergido primeiro pela água, foi depois envolvido com as lágrimas de todos os cristãos existentes em todo o país.»
Levado outrora para a tumba pelos cristãos daquelas terras da Cochinchina, são também agora duas dezenas de vietnamitas que o trazem de longe para memória das gentes da Guarda, cidade que o ignorara ao longo de quatro séculos. Lição vinda de longe, como para longe embarcou Francisco de Pina, o «genial» «mestre da língua» vietnamita
Aquele barco de bronze, instalado no jardim da Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, é simbólico a muitos títulos, mas ele é sobretudo símbolo do regresso de Francisco de Pina à Guarda. Um barco o levou, um barco o trouxe de volta com as letras que ele começou a musicar.
A Guarda, cidade, e a Guarda, diocese, bem podem sentir-se honradas com esta prenda vinda de tão longe.
Com este grupo de vietnamitas na Guarda, da lonjura se fez perto. Obrigado Vietname.
Guarda, 26 de Novembro de 2023

Notícias Relacionadas