As ciências antropológicas aí estão para no-lo recordarem.
As refeições partilhadas encontram-se na base da vida humana, das suas civilizações e culturas. Terá sido uma festa, quando os nossos longínquos antepassados descobriram o fogo, começaram a cozinhar os alimentos e partilhá-los à volta de uma fogueira.
Foi ficando para a história a obra de Claude Lévi-Srauss intitulada “O Cru e o Cozido” em que este antropólogo defende que a cozinha constituiu a passagem do Homem do estado de natureza para o de cultura. Se o “cru” é o estado natural, o “cozido” representa o salto que lhe permitiu superar as forças cegas do meio e lhe abriu as portas para ilimitadas possibilidades de superar a fome.
Não será de admirar que na Bíblia, essa grandiosa narrativa em que a História da Salvação se vai revelando através das vicissitudes da História Humana, o alimento lá esteja, em explosões de carga física e simbólica, a começar com a partilha de um fruto proibido no jardim da criação. E, nos quatro Evangelhos, a comida – e a refeição partilhada – está de tal maneira presente que seria de esperar que essa realidade tão humana se encontrasse mais presente e valorizada na teologia, particularmente na cristologia.
Desçamos à objectividade dos números. Há 137 referências à comida nos Evangelhos. É em Lucas que aparece o maior número de referências, 56, a começar com o “Magnificat” que aparece logo no primeiro capítulo, onde se diz que o Senhor «aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu sem nada» [Lc 1,53]. No Evangelho de João, o alimento é referido 31 vezes, a começar com a narrativa muito conhecida do primeiro milagre realizado no banquete de um casamento em Caná da Galileia [Jo 2,1-11]. No Evangelho de Mateus, encontram-se 28 referências à comida, a começar com a alimentação de gafanhotos e mel silvestre de João Baptista no deserto [Mt 3,4] e a primeira provação por que passou Jesus após o jejum de quarenta dias e quarenta noites [Mt 4, 3-4]. No Evangelho de Marcos, que abre também com a comida de João Baptista no deserto [Mc 1,6], há 22 referências à alimentação.
Bonitas contas, certamente, com números superiores às referências dos Evangelhos à oração. Contas que impressionam nos números e no seu significado, sobretudo se pensarmos que em muitos casos nos encontramos em situação de refeições partilhadas em que Jesus da Galileia é um dos comensais à mesa com toda a espécie de pessoas. Seja para exemplo, para além do já referido banquete de Caná da Galileia, a recepção que lhe fez em sua casa Zaqueu, esse rico chefe dos publicanos [Lc 19, 2-9] ou daquele fariseu, chamado Simão, em cuja casa, estando Jesus reclinado à mesa, aparece uma mulher a banhar-lhe os pés com as próprias lágrimas, enxugá-los com os seus cabelos e beijá-los e perfumá-los com o melhor perfume que encontrou e mereceu o maior elogio por parte de Jesus. Três exemplos que bem evidenciam que as refeições partilhadas não são só alimento do corpo, mas convivialidade em que se revela o abraço dado por Deus ao Homem e que nem todos pareciam compreender. «Veio João, que não come nem bebe, e dizem: “Tem um demónio”. Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: “Eis um homem comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores”.» [Mt 11, 18-19].
Nada será de surpreender que os Evangelhos nos mostrem Jesus a comer e a beber a uma mesa com os discípulos e amigos, nem mesmo que coma e beba com publicanos e pecadores. Também não será de surpreender que Jesus se despeça dos seus discípulos com uma ceia. «Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco antes de padecer, pois digo-vos que não mais a comerei até que ela se cumpra no reino de Deus.» [Lc 12, 15-16]. Ceia que foi desejada, ceia última, ceia de despedida, de despedida definitiva, ceia dramática e trágica, cheia de últimas recomendações e em que se assegura uma presença para sempre na partilha do pão.
O surpreendente, estranho mesmo, é que Jesus, depois de ressuscitado, continue a comer e a beber com os discípulos, tal como é dito nos Actos dos Apóstolos que principiam com estas palavras: «Apresentara-se vivo a eles, depois de padecer, durante quarenta dias, com muitas provas, mostrando-se e falando do reino de Deus. Comendo com eles, recomendou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem o prometido pelo Pai» [Act 1, 3-4], para se reiterar mais à frente a mesma informação de modo ainda mais claro: «Mataram-no, pendurando-o num madeiro. Mas Deus o ressuscitou ao terceiro dia e fez que aparecesse, não a todo o povo, mas às testemunhas designadas de antemão por Deus; a nós, que comemos e bebemos com ele depois que ressuscitou dos mortos.» [Act 10, 39-41].
Não poderemos saber quantas vezes Jesus ressuscitado terá sido comensal nas refeições com os discípulos, mas há narrativas exemplares nos Evangelhos. Em Lucas, para além da aparição aos discípulos de Emaús que só reconheceram o Ressuscitado ao partir e na distribuição do pão [Lc 24, 30-31], apresenta outra narrativa ainda mais esclarecedora que assim termina: «Por que estais perturbados? Por que vos ocorrem essas dúvidas? Vede as minhas mãos e os meus pés: sou eu mesmo. Tocai e vede: um fantasma não tem carne e osso como vedes que eu tenho. Dito isso mostrou-lhes as mãos e os pés. E, como não acreditassem por pura alegria e assombro, disse-lhes: “Tendes aqui algo para comer?” Ofereceram-lhe um pedaço de peixe assado. Ele o pegou e o comeu na presença deles… Então abriu-lhes a inteligência para que compreendessem.». [Lc 24, 38-43].
O Evangelho de João termina com um quadro ainda mais impressionante, quer na dimensão narrativa quer na envolvência simbólica. Aí Jesus prepara para os discípulos um pequeno almoço de pão e peixe assado nas brasas no final de uma noite em que o grupo de discípulos nada pescara, mas que, pela manhã, enche a rede uma grande quantidade de peixes, pescados à direita da barca conforme as indicações de um forasteiro desconhecido que aparecera na praia. E o forasteiro é identificado aqui pela grandiosa pescaria e não pela distribuição do pão e do peixe [Jo 21, 1-14]. Relato impressionante repleto de detalhes de alcance simbólico: a pesca, a noite e a manhã, a rede que não se rompe, a nudez e a veste de Pedro, a navegação e margem (praia), a preparação da refeição, o peixe e o pão, a distribuição do alimento, o ar livre, o contexto das tarefas quotidianas, a que acresce, depois, a de pastoreio de ovelhas no diálogo com Pedro [Jo 21,15-23].
O surpreendente é que Jesus se faça comensal nas refeições dos discípulos depois de ter ressuscitado. Jesus aparece sob a forma misteriosa que, inicialmente, nem sequer é reconhecido pelos discípulos. Fora do espaço e do tempo, o seu corpo já não é um corpo terreno, mas, mesmo assim, aparece afectado pelo tempo e pelo espaço e transcendentalmente ligado à vida terrena a ponto de mostrar as mãos e os pés e permitir ser tocado. Mas, o mais notável, surpreendente e estranho, é que possa comer na companhia dos seus. Um corpo glorioso, espiritual, imortal e incorruptível por que razão teria necessidade de ser alimentado?
O corpo ressuscitado é um mistério e a pergunta só pode ter resposta teológica e espiritual, embora tenha havido filósofos que se atreveram a especulações. E lembro o filósofo do idealismo alemão, Friedrich W. J. Schelling (1775-1854) para quem a ressurreição é a prova da irrevogabilidade da encarnação. Que Cristo Jesus ressuscitou e tenha assim aparecido aos discípulos não significa que se tornou homem para deixar de o ser, significa antes que Ele é permanentemente e eternamente homem.
Somos comensais do Ressuscitado e as refeições pascais que Ele partilhou com os seus discípulos prefiguram – e são – uma antecipação parcial do Banquete do Futuro Absoluto que nos aguarda. Terão, assim, um sentido mais claro as palavras de Jesus na ceia da despedida: «Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco antes de padecer, pois digo-vos que não mais a comerei até que ela se cumpra no reino de Deus.» E nós, cidadãos deste mundo, já nos movemos nesse Reino e somos comensais do Banquete da Sua Pousada.
O mundo dos seres humanos poderá não estar cristianizado, mas, aos olhos da fé, encontra-se cristificado pelo Ressuscitado.
Guarda, 20 de Março de 2024