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COMÉDIA DE ENGANOS

Nos meus tempos de rapaz, o “Cavaleiro Andante” (C.A.), uma revista semanal de histórias aos quadradinhos fazia as minhas delícias: era eu que, todos os sábados, ia comprar o C.A. ao quiosque do café Mondego, onde o Senhor Vinhas, já idoso, rezingão e sempre mal humorado, vendia os jornais.

À hora prevista para a chegada da camioneta, lá estava eu, ao frio, à chuva, ao sol ou à neve, plantado à porta do estabelecimento para ser um dos primeiros a ser atendido. E logo depois, para matar a ansiedade de folhear a Revista e matar a curiosidade maior, ia-me sentar num banco do jardim ao lado. Usava-se, no C.A., a prática normal de a narrativa dos episódios semanais acabar num ponto alto de particular suspense, ficando-nos nos olhos e na memória, acicatado, o interesse pela sequência da história. Desse ponto de especial intensidade “dramática”, seguia-se, em geral, um “desatar do nó”, fosse num ajuste de contas, em duelos ou em vingativas artimanhas, todos tecidos de gestos de bravura e engenho bélico. Não se precipitem os meus leitores na crítica fácil sobre a qualidade dos textos que a minha geração devorava com avidez: afinal, não havendo televisão e não sendo fácil ir ao cinema, era isso que nós tínhamos para nos entretermos. E, diga-se de passagem, o C. A. era uma boa revista juvenil não só na modalidade semanal mas também nos álbuns publicados trimestralmente, que contavam uma história completa.
Das histórias em série lembro-me duma que particularmente me entusiasmava – um misto de aventura policial e de espionagem. Era a “Marca Amarela” (um sinal em forma de @, em que o a era um m, em amarelo vivo, que era a marca de autor deixada no local da prática dos seus crimes). Tratava-se de uma criação de Edgar P. Jacobs e tinha como protagonistas duas figuras muito credíveis e simpáticas de “detetives” amadores que, na versão portuguesa, se chamavam Professor Mortimer, com a sua barba castanha e bem cuidada e o Capitão Edgar, de bigodinho sempre aparado. Estávamos no começo da década de 50 do século passado, e, com os meus 9,10/11anos, vivia e entusiasmava-me com essas narrativas magnificamente ilustradas, que habitavam os meus sonhos de glória. Também o “Mundo de Aventuras” (M.A), uma publicação mais orientada para a ficção científica com as aventuras de Flash Gordon em galáxias distantes ou as incursões no mundo fascinante da magia, tendo como expoente maior o mágico Mandrake, era um émulo do C.A. Havia, a propósito, grande rivalidade entre as “claques” de simpatizantes das duas citadas revistas aos quadradinhos. Eu, adepto fiel do C.A., mantinha com os amigos e colegas que preferiam o M.A. acesas discussões sobre o valor intrínseco de cada uma, o que contribuiu grandemente para afinar a minha “retórica”.
Vem este “memorial” a propósito da deplorável série de episódios, diria “rocambolescos” que se vêm acumulando, a um ritmo alucinante, em redor das práticas e figuras políticas do Governo em presença e que agora atingiram o tal ponto alto de congeminação e perfídia com as audições na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à gestão política da TAP. Senti-me regressar ao meu mundo de garoto ao tomar conhecimento do episódio de taberna ocorrido em pleno Gabinete do Ministro das Infra-Estruturas, João Galamba. Que gente é esta? Em que escola andaram? O que lhes ensinaram de civismo, civilidade, espírito de serviço e decoro? Subscrevo aqui inteiramente o que António Barreto afirma no seu artigo de hoje [20 de maio] no PÚBLICO, sob o título “Uma República de Garotos”, quando escreve: “Raramente, nestas décadas que levamos de democracia, se atingiu um ponto tão baixo de miséria moral, de atentado político, de vilania, de imoralidade e de sem vergonha!”. “Há gente, acrescenta António Barreto, que, por bem menos, reside atualmente na penitenciária, em Custóias ou em Pinheiro da Cruz. Raramente como agora a justiça portuguesa esteve tanto em causa. Raramente como agora o Estado de Direito esteve tão ameaçado”.
Na verdade, como é possível:
– uma inacreditável exoneração por telefone de um adjunto do Ministério; cenas de pancadaria entre colegas de trabalho, envolvidos em agressões e disputa física, lutando pela posse da mochila do adjunto exonerado onde estaria um célebre computador contendo informação classificada e sigilosa; fugas para a casa de banho de senhoras funcionárias em pânico; telefonemas mais ou menos histéricos e no mínimo precipitados para instâncias policiais; ameaças de agressão do ministro Galamba ao assessor Pinheiro (ou do assessor Pinheiro ao ministro Galamba); acusações reiteradas de mentiras por parte de um e/ou do outro, um depoimento “egocentrado” da Chefe de Gabinete Eugénia Correia (citado e elogiado ad nauseam, de forma ditirâmbica e desproporcionada pelo “tutelado” Ministro Galamba); contactos por parte de um Gabinete em descontrolo absoluto – a começar pelo próprio Ministro – implicando inúmeros outros membros do Governo e responsáveis de serviços de forças policiais e de segurança, com acusações de roubo do tal computador (afinal de uso pessoal) por parte do assessor despedido;
como é possível que se exponha assim um funcionário tido como responsável e merecedor de confiança – que, diga-se de passagem, deixou, a meu ver, uma opinião positiva, pela apresentação e postura, pelo discurso estruturado e pela argumentação serena que produziu na CPI, revelando ainda, ao contrário de outros com maiores responsabilidades, conhecimentos sobre o Plano de Gestão da TAP, o que abona quanto à sua capacidade; como é que é possível que tudo isto tenha ido terminar nos Serviços de Informações da República (SIRP), envolvendo o SIS em condições de legalidade mais que duvidosa, para a apreensão do portátil que, segundo o próprio SIS, afinal não foi objeto de qualquer roubo ou furto;
COMO É POSSÍVEL que o Senhor 1º Ministro tenha qualificado (com a segurança das suas intervenções) que se estava perante o “roubo de um computador” e tenha sido informado (em que termos e em que momento?) do acionamento do SIS (e da PJ e da PSP) e se mantenha até ao momento em tático silêncio, escudando-se atrás do ministro Galamba, o ativo tóxico nº 1 do seu Governo, que decidiu manter em funções para desafiar o Presidente da República para uma justa pessoal, de consequências e resultados imprevisíveis???
Mas que gente é esta que nos governa? Qual o sentido de Estado destas personagens? Na melhor das hipóteses, são artífices e intérpretes de uma comédia de enganos. Mais uma citação de António Barreto: “Parece a República dos Garotos […]”, “que só têm regras claras e precisas: eles próprios, os seus amigos, os seus partidos, as suas famílias, as suas empresas e as suas auréolas de glória narcisista que designam por interesse público”. Perversos e indesejáveis em qualquer posto da governação “pelo seu caráter atrabiliário e pela irascibilidade adolescente. Pela palavra gratuita, pela moral que muda, pela crueldade, pelo cinismo e pela hipocrisia”, pela Mentira com letra grande com que se divertem, se mascaram, nos humilham e nos traem.
Lisboa, 20 de maio de 2023

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