Encontramo-nos em pleno Verão e tempo de Jogos Olímpicos de Paris. Em tempo de férias para muitos, para quem as pode ter e possui condições financeiras para as poder gozar. Porque, como é sabido, há muitos que nunca puderam ter férias e continuam à espera que um galo cante. Um galo que nunca terá dado férias ao canto e continua a fazer companhia a quem as não tem e nem as pode ter. Por isso, enquanto outros cronistas sugerem listas de livros para ler nas férias – boas sugestões, sem dúvida –, aqui, a pensar em quantos as não podem ter, lembro o galo que também nunca as teve nem terá, por mais que cante a anunciar madrugadas de vida e festa.
Cresci a ouvir cantar o galo. O galaró, como lhe chamávamos na minha terra, na minha infância. Nós, a criançada. Logo bem ele cedinho ele cantava quando o Sol ainda estava a chegar aos campos da vizinha Espanha vindo lá da França, terra de galarós. Cresci a ouvir cantar o galo e a vê-lo, a horas mais de gente, a esticar ao alto o pescoço plumado e lançar aos quatro ventos o cocorocó musicado. E, depois, a outras horas do dia. Já não sei bem o que mais então apreciava: se o quadro multicolor da sua plumagem, se o canto majestoso de rei da capoeira ou se aquela posição empertigada de parar, esticar o pescoço e erguer ao alto o bico amarelo com que termina a crista vermelha para dar tom à voz e lançar ao vento a música trazida da nascença.
Cresci na aldeia a ouvir cantar os galos. Não um, mas vários. Porque na aldeia eram bastantes os galos cantantes. E, em determinadas horas do dia, até parecia que cantavam ao desafio. Se cantavam!… Cantavam em todo o ano, em todos os meses, todos os dias, a horas que eles bem sabiam até ao aproximar do pôr do Sol, momento em que se encaminhavam para o poleiro, comandando as galinhas do seu bando.
Agora, na minha aldeia, não tenho ouvido um galo cantar. Desde há muitos anos. Ou porque já não existem galos por lá, ou porque não cantam com a tristeza que sentem do despovoamento da aldeia e desertificação do interior beirão. Agora as raras acrianças que possa ali haver já não ouvem os galos cantar.
Agora já não há crianças que conheçam «As vozes dos animais», poema do desconhecido Pedro Dinis [1829? -1896] que mereceu as honras de Antero de Quental [1842-1891] o incluir na sua antologia «Tesouro Poético da Infância» cujo poema abre desta maneira rimada: «Palram pega e papagaio / E cacareja a galinha; / Os ternos bombos arrulham, / Geme a rola inocentinha.» A esta quadra se seguem mais nove quadras em que os petizes, escolares de então, enriqueciam o vocabulário a rimar com as vozes dos animais: palrar e arrulhar, mas também rugir e uivar, urrar e balar, regougar e gorjear, crocitar e grunhir, balir e vagir, e outros verbos mais familiares como mugir e miar, relinchar e surrar, piar e chilrar, chiar e zumbir. E, mais para o fim, lá se encontra a quadra onde é poetizado o cucuricar do cantante galaró: «Bramam os tigres, as onças, / Pia, pia o pintainho; / Cucurica e canta o galo; / Late e gane o cachorrinho.»
Muito interessante achei, à altura, aquela sequência de verbos, «vozes de animais» que nós, pequenos estudantes, procurávamos fixar na memória fresca de crianças. Achei sobremaneira inadequado aquele «cucuricar» com que se enfeitava o canto do galo, verbo que mais fazia lembrar o canto do cuco, e intimamente interroguei-me, com certeza a pensar no cocorocó, se não deveria antes dizer-se e escrever «cocoricar» com as vogais bem abertas como o bico do galo. Seria um verbo que mais se aproximava daquele cantar onomatopeico. O poeta lá teria razão, pensei, e não me atrevi a apresentar a sugestão à sabedoria escolar de então.
Uma das últimas vezes em que ouvi cantar os galos foi bem longe, no início de Agosto, em férias. O galo, que não tem férias, embelezou, com o seu canto, aquele dia das minhas férias. Já lá vão uns bons anos e nem poderei dizer ao certo. Uma vintena, talvez, mas aquele festival de galos a cantar naquela manhã de Verão nunca mais a pude esquecer, como não esqueci a lonjura daquela aldeia do vale serrano de onde provinha aquele concerto matinal.
Naquele ano pensámos em fazer umas férias diferentes e decidimos experimentar turismo de habitação. Foi no Minho, na zona do Gerês. Foi aí que ouvi cantar o galo. Vários galos que se iam revezando como que a cantar ao desafio. Ou, então, se sobrepunham com harmonia. Tinham-nos aconselhado a visitar uma pequena ermida no cimo de um monte de onde se avistava uma paisagem sobre o vale. E foi o que fizemos. Tomámos o pequeno almoço madrugador e subimos à montanha por estrada pouco amanhada. E era de deslumbramento o que nos esperava.
O quadro era de excelência. Vasto e belo na imponência da natureza. Lá bem ao fundo, certamente a uns quilómetros, uma aldeia de casario um tanto disperso e pouco definido. Não era tanto o casario que emergia daquele vale verde, mas o fumo branco que das chaminés, contrastando com a verdura da cordilheira de montanhas opostas, se elevava ao céu deixando nos ares tranquilos a marca da presença de gente. E a gente seria muita ainda. Aquela aldeia minhota, a avaliar por aquela floresta de cordões de fumo branco que emergiam daquelas casas, era habitada por bastante gente. Por gente que acendia o lume logo pela manhã a preparar a comida do dia. Ouviam-se, é verdade, indecifráveis e abafadas vozes humanas, mas eram os galos que se faziam ouvir com clareza fazendo festa matinal. Eram vozes claras e afinadas que pareciam provir de ali, de bem perto. Mas não. Eram cocorocós que provinham lá do fundo, de longe, de alguns quilómetros, certamente. As condições acústicas daquele amplo vale minhoto fariam concorrência à acústica do melhor teatro romano. E, por momentos, ali ficámos a ver, na amplidão daquele vale, os cordões de fumo dançante a elevarem-se ao céu azul, ao som do cantar daqueles galos, vindo bem lá do fundo e se elevava até nós, contemplativos de ocasião, sentados num pequeno banco de pedra do adro da ermida de montanha, onde então mais ninguém havia. O espectáculo era só nosso. Só nosso mesmo, naquela manhã de um dia do mês de Agosto.
Que me lembre, a última vez que ouvi um galo cantar foi no outro lado do mundo, em finais de Julho de 2012. Encontrei a situação tão inusitada que ainda hoje estou a ouvir o cantar daquele galo madrugador. Foi em Ho Chi Mihn, na velha Saigão do Vietname. Um galo despertou-me, antes de outros relógios, naquela última manhã de descobridor de terras da Cochinchina onde o guardense P. Francisco de Pina fez história na evangelização e na escrita da língua local. As traseiras do hotel davam para um espaço verde. Era de lá que vinha a música daquele galaró vietnamita. Não o consegui ver, como desejaria, mas ele por ali andava. Cantou várias vezes para surpresa e regalo de hóspedes vindos de longe.
Se o não soubesse, ficaria então a saber que os galos vietnamitas cantam como os minhotos e os galos de outrora da minha aldeia. Contrariamente aos humanos, os galos têm um só cantar. Sempre o cocorocó musicado à sua e mesma maneira. É verdade que «A fala foi dada ao homem, / Rei dos outros animais.», como lembra o poeta, mas o Homem foi-a diversificando com tal maleabilidade e inusitada criatividade que os povos deixaram de se entender por mais que se esforcem os mensageiros da paz. E eles andam por esse mundo. Uns com maior sucesso do que outros. Francisco de Pina foi bem sucedido ao dominar perfeitamente aquela língua estranha de tons musicais da antiga Cochinchina e ao lusitanizar a sua escrita com a qual outro galo passou a cantar para a cultura vietnamita.
Para si, estimado leitor, que se encontra ou vai entrar em férias, haja um galo que o encha de boa música todos os dias e que o faça descansar com suma felicidade. Para si, honrado leitor, que não tem férias nestes dias ou que nem espera poder tê-las, haja um galo cantador que o desperte, em cada madrugada dos dias, para a alegria da beleza da vida. E, para os atletas dos Jogos Olímpicos, haja um galo que cante em terras gaulesas em prol da paz e da harmonia entre os povos, como harmoniosamente eles se alinharam no rio de Paris. Sena, de seu nome.
Guarda, 28 de Julho de 2024
António Salvado Morgado
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