Se, para além de Santo António, São João e São Pedro, há outros Santos Populares, São Martinho de Tours [316-397] é um deles, o Santo que, além de ter inspirado artistas e cultura popular, tem o nome gravado em povoações portugueses e inspirou outro Martinho, São Martinho de Dume [518-579].
Confundem-se, às vezes, mas estamos perante dois Santos separados no tempo por duzentos anos, embora o calendário litúrgico os aproxime. Menos de um mês separa as suas festas litúrgicas: São Martinho de Tours é celebrado a onze de Novembro e São Martinho de Dume, na companhia de São Frutuoso e São Geraldo, a cinco de Dezembro.
Provenientes ambos lá das terras do extremo do Império Romano que correspondem hoje à Hungria, estes dois santos, de nome Martinho, têm o seu nome bem gravado na religiosidade dos portugueses e na popularidade das suas tradições. Encontrando-nos em meses outonais, não será necessário lembrá-lo: as castanhas, que tão bem vivem no nosso imaginário outonal e que saboreamos cozidas, piladas e assadas no magusto de campo ou caseiro, ou a acompanhar à mesa alguns pratos, são castanhas de São Martinho. O de Tours.
Cresci a olhar para castanheiros longais. Aquele soito, defronte da casa dos meus pais onde nasci, era uma lição de vida pautada pelas estações do ano. Constituído por uma dezena de castanheiros com paredes-meias com outro soito de menor dimensão, mas igualmente constituído por castanheiros centenários, aquele espaço respirava vida pujante, mesmo quando adormeciam nos meses mais frios de Inverno. Embora alguns já carcomidos e ocos nos grandes troncos de onde emergiam enormes pernadas, aqueles sumptuosos castanheiros, de umas dezenas de metros de altura, faziam parte da nossa vida. Pessoal, doméstica e social.
Aprendi a conhecer as estações do ano, na contemplação daqueles castanheiros. Quando o Sol e Lua viajavam baixinho, os ramos despidos de folhagem projectavam-se no céu rendilhando-o de mil modos e figuras que alimentavam a minha imaginação infantil. Mas logo vinha a Primavera e aqueles castanheiros verdejavam ao som musicado das aves em festa de recomeço. E quando, no Verão, o Sol passava alto e sufocava de calor os ares, já aqueles castanheiros se enchiam de ouriços na densa folhagem que projectava no chão uma sombra densa a oferecer frescura ao caminhante. Quando, então, se aproximava o Outono, logo aqueles castanheiros davam sinal de um ofertório benfazejo, abrindo os ouriços para fazerem pingar os seus frutos, enquanto as folhas iam amarelando para também elas caírem abanadas pelo vento e alimentarem a terra de húmus.
Foi então, naquela meninice de amar a Terra onde nasci, que conheci São Martinho. Muito pouco, embora. São Martinho era, à altura, simplesmente Martinho. E conheci-o, não porque houvesse qualquer imagem do Santo de Tours na igreja local, que não havia, ou porque o nome Martinho fosse vulgar na aldeia, que também não era, mas porque São Martinho era o Santo das castanhas e dos magustos ao ar livre. Ele e todos os outros porque também a festa de Todos os Santos era de magustos, familiares ou de grupos. Bem posso dizer que foram as castanhas que me levaram a São Martinho. O Santo, para mim e, creio bem, para a outra criançada que tanto se regalava com as castanhas, era só o Santo das castanhas. Nada mais. E assim ficou no meu imaginário infantil. Simplesmente Martinho, um Santo que nos trazia as castanhas e os magustos.
Compreensivelmente, e não fosse o caso de se tratar de um santo com mais de mil e seiscentos anos, a vida de São Matinho de Tours aparece rodeada de dizeres da tradição. Filho de um comandante romano e naturalmente educado no seio de uma família pagã a pensar numa carreira militar, este cavaleiro vindo lá mais do Oriente, viria a cruzar-se com Santo Hilário, bispo de Poitiers, que o encaminharia para a vida sacerdotal. Ordenado bispo de Tours, ali viria a ser sepultado depois de profunda actividade apostólica e intensamente venerado por peregrinos vindos de perto e de longe.
Ficou no imaginário popular a sua especial dedicação aos pobres e mais necessitados. Reza a lenda que, num frio e tempestuoso dia de Outono que assolava a Europa, Martinho, então jovem cavaleiro de cerca de vinte anos, encontrou num caminho um mendigo que lhe pediu esmola. Não trazendo nada consigo, retira das costas a sua capa, corta-a ao meio com a sua espada e entrega metade ao mendigo para que pudesse ele também proteger-se da intempérie. Mas a história não ficou por aqui. Diz a lenda que, após o encontro com o mendigo e mal se dispôs a recomeçar a viagem, a tempestade passou e o Sol despontou radioso e quente no céu azul.
Diz-se que é graças a esta lenda que na primeira metade do mês de Novembro ocorre o designado «Verão de São Martinho», tão esperado para os magustos da época, acompanhados com o vinho novo ou a jeropiga. Mas também se diz, noutra versão da mesma lenda, que Martinho, quando chegou, já no Inverno, ao aquartelamento com a farda danificada, impôs-se a disciplina militar e foi punido a andar dois dias nu na parada do quartel. Foi nesses dias de punição que se verificou uma inexplicável alteração climática e os dois dias de frio invernal da punição transformaram-se em dias de Sol ameno e acolhedor. E foi assim, nesta versão, o primeiro «Verão de São Martinho» que, desde então se vai repetindo cada ano no mês de Novembro, por altura da celebração da sua festa religiosa.
Pensando ou não nesta lendária narrativa, verdade é que nos habituámos a esperar em cada ano nesta época outonal por uns dias de Sol para os magustos e as feiras e festivais das castanhas que animam muitas regiões a celebrar São Martinho, o santo Bispo de Tours.
Sendo São Martinho um dos principais evangelizadores da antiga Gália, a actual França, cedo Tours se transformou num lugar de intensa peregrinação. Por lá passou um dia outro Martinho, seu compatriota, que, depois de andar pelos orientes em intensos estudos religiosos e ter peregrinado por Tours a visitar o Santo, seu homónimo, vem para o norte da Península Ibérica onde veio a encontrar Charrarigo, Rei dos Suevos. Estabelecendo-se em Dume, junto a Braga, ali viria a fundar um mosteiro dedicado a São Martinho de Tours e que viria a ser o local da irradiação do Evangelho entre os Suevos e da veneração do Santo de Tours. Elevado ao episcopado em Dume foi, posteriormente, transferido para a Sé de Braga. Desde 1985, São Martinho de Dume é o padroeiro principal da arquidiocese de Braga.
Para além do dia 5 de Dezembro todos os dias são dias de São Martinho de Dume. Todos os dias o evocamos quando pronunciamos os nomes dos dias da semana. Outrora os astros do nosso Sistema Solar é que davam os nomes dos dias da semana: Sol (Domingo), Lua (Segunda), Marte (Terça), Mercúrio (Quarta), Júpiter (Quinta), Vénus (Sexta) e Saturno (Sábado). São Martinho de Dume, achando impróprio, e até uma blasfémia, que os dias da Semana Santa evocassem nomes pagãos, determinou que todos fossem designados de «feria», ou seja, “dia livre”, seguindo a ordem numérica. E da Semana Santa se passou para os dias de todas as semanas.
Ontem esteve nevoeiro e chuvoso. Hoje, porém, dia seis de Novembro, faltando alguns dias para a festa de São Martinho, o esperado Verão do mês de Novembro já cá está, aqui, nesta cidade da Guarda, onde escrevo. O céu encontra-se todo azul, o Sol está esplendoroso e a temperatura aprazível. Tudo a fazer apetecer as castanhas assadas de São Martinho. Dizem os meteorologistas que, na próxima semana, São Martinho trará ainda melhor Verão para a sua festa.
Ah, quando visitar Braga, passe por Dume, ali na freguesia de Real. É um ponto de encontro de dois Santos de nome Martinho. Talvez não haja lá castanhas, mas será uma lição de cultura e de história. Bom proveito.
Guarda, 6 de Novembro de 2024
António Salvado Morgado
morgado.salvado@gmail.com