Histórias que a Vida Conta
No passado dia 14 de Julho nasceu a Carminho. Filha do Pedro e da Joana, é a nossa primeira neta. Foi um dia mágico e a magia prolongou-se pela semana e, concluída esta, continua ainda a configurar o milagre que é sempre o desabrochar de uma nova vida.
A menina nasceu, no Hospital dos Lusíadas, com um pouco mais de 3,5 quilos. É um bebé lindo e, desde o primeiro momento que faz pela vida: chora, mama e dorme… Enfim, cumpre bem a sua obrigação.
Nós, avós “babados”, não nos cansamos de olhar para ela, de apreciar as suas feições regulares, de espiar as caretas que faz enquanto dorme, de nos deixarmos surpreender com a poderosa projecção do seu choro a reclamar alimento, de a fotografar para depois encaminhar a sua imagem para os amigos mais chegados. Avós estagiários, estamos certos de que os Amigos a sério nos entendem e desculpam estes ataques de ternura embevecida.
Desde que se soube que era uma menina, os Pais deram-lhe o nome de Maria do Carmo: nome simples, bem português, tanto mais apropriado quanto a data do nascimento estava prevista para o dia da Senhora do Carmo – 16 de Julho. Antecipou-se um pouco, tendo visto a luz do dia no aniversário da “tomada da Bastilha”, data sagrada para os franceses e celebrada por todos os amantes da Liberdade. Bom augúrio!
Por outro lado, mais chegada a este nosso cantinho lusitano, mas, ao que se espera, futura cultora de ideais de “esforço, dedicação, devoção e glória”, logo que nasceu foi feita sócia do Sporting Clube de Portugal, clube de toda a Família. Clube que pouco ganha? Não faz mal, porque as vitórias têm assim mais sabor e enchem a vida toda na busca e no prazer da sua conquista!
Também já foi registada e é portadora, desde hoje, dia 20 de Julho, do cartão do cidadão. Com a aquisição da sua condição de cidadã portuguesa, passou, ipso facto, a participar solidariamente da enorme dívida pública nacional, sendo, por isso, sem consentimento e sem culpa, desde os seis dias de idade, “devedora”, como todos os seus concidadãos, de algo equivalente a 22.000 euros (!). Está, assim, longe de ser um leve fa(r)do este de se nascer português em meados da segunda década do século XXI. Mas a hora de se nascer é sempre uma hora única, de esperança sem limites em que todos os desejos são legítimos e o futuro é risonho e pródigo. Assim será com a Carminho, com os magníficos Pais que Deus lhe deu, rodeada que está por tanta gente boa a querer-lhe bem e com Nossa Senhora no nome a abençoá-la para sempre. Pela parte que me toca, sou um avô tardio, mas, confesso, rejuvenescido e em permanente expectativa.
Tenho um amigo que muito estimo, alentejano de muito boa cepa, coração franco e mente aberta, que, com um toque de irresistível humor surrealista me disse o seguinte, respondendo à notícia do nascimento da Carminho: “se soubesse que era tão bom, tinha sido primeiro avô e só depois pai”.
Um outro amigo, homem de estudo, ainda com muitas ocupações profissionais, costuma dizer-me a propósito dos netos que o visitam regularmente: “dão-me duas alegrias em cada dia; uma quando chegam, a outra quando se vão embora”.
Em comum, sobressai o forte chamamento do sangue, a esperança de que quem vem de novo possa ser melhor do que nós, que nos aproximamos da hora da partida, lembrando e honrando o exemplo de vida dos pais e dos pais dos pais, dando seguimento a valores, hábitos, falas ou até a tiques e bizarrias que fazem a especificidade de cada família e a distinguem das restantes, sem prejuízo das particularidades das diferentes gerações, dos seus anseios renovados e da mentalidade nova daqueles que nos sucedem.
É bom ser avô: ver a bebé crescer, desfrutar com as suas graças e traquinices, vê-la começar a sorrir, a articular sons ou a ensaiar os primeiros passinhos, andar depois com ela pela mão, levá-la a passear, ler-lhe histórias de embalar, chamar-lhe a atenção para o cheiro de uma flor ou da terra molhada, para a beleza de uma árvore, para a majestade do mar ou para a passagem das nuvens, visitar, com ela, um jardim ou, mais tarde, um museu, aprender a ouvir o chilrear dos pássaros e a enternecer-se com as belezas da natureza e da arte. Levá-la, no devido tempo, ao Oceanário, ao Jardim Zoológico, ao Jardim Botânico ou à Estufa- Fria, para conhecer a graça e a agilidade dos animais e apreciar a beleza das plantas. Admirar, com ela, a sucessão das estações do ano…
Sou, como já disse, um avô caloiro mas já velhote, que tentará suprir a falta da antiga energia com muita ternura e com a sageza que só o tempo dá. Assim a vida me conceda ainda a graça de a poder ver crescer, menina e minha neta.
Tempos houve, até no Ocidente civilizado, em que o nascimento de uma menina não era propriamente um feliz evento, dado que, para uma mulher, mesmo das classes altas, o futuro tinha basicamente só duas saídas “convenientes”: o casamento ou o convento…! (com o enorme “inconveniente” do dote, em qualquer dos casos…).
Vale a pena, a este propósito, determo-nos em alguns breves trechos de uma carta do célebre epistológrafo D. Francisco Manuel de Melo (também dramaturgo, político, militar, por vezes preso, desterrado, exilado, caído em desgraça ou embaixador do reino, conforme os balanços de um destino mirabolante que se desenrolou por meados do século XVII). Vejamos como ele se desenvencilha, em gentil vénia literária, da árdua tarefa de apresentar, com atraso, felicitações a um amigo pelo nascimento de uma filha primogénita:
“Tão fora do Mundo ando eu (estava preso na altura), que só hoje soube haver entrado nelle huma filha de Vossa Senhoria, que por bem e para bem entre no Mundo. A tardança desta minha manifestação de alegria bem era necessário que fosse dar em hum Soneto Natalício; mas que não seja razão para servir tão cedo a uma dama que no-lo não merece com ruins versos. Em prosa a festejemos que he estylo de que mais vezes se serve a verdade. Não estranhe Vossa Senhoria que esta Senhora se antecipasse a hum gentil herdeiro; porque afinal as mulheres há dias que em tudo se nos adiantão; e nisto de chegar a ser vistas, não darão nunca vantagem às flores da Primavera. Quanto mais que huma filha de Vossa Senhoria, por mulher, por flor e por tudo, lhe toca aparecer primeiro”.
Mas a roda do Mundo não pára e a tradição já não é o que era…
E é sabido que as meninas “levam sempre a água ao seu moinho” e são geralmente o encanto do pai. Estou em crer que sim, lembrando agora as gracinhas da minha filha e como ela sabia sempre desmontar todos os meus procedimentos censórios contra ela. E estou mesmo a ver que a Carminho vai ser ainda mais eficaz pois, com a velocidade dos progressos desta nova era, vai ser ela, seguramente, a despertar-me para as novidades e a ensinar-me muitas coisas, como por exemplo, novas formas de dizer ou como melhor lidar com as novas tecnologias. E, assim, paradoxalmente, serei eu a entrar no mundo dela e não ela no meu.
Por isso, D. Carminho, com sua licença e sem tardança, aqui me apresento eu ao seu serviço!