Talvez nunca, como nos dois últimos anos, tenhamos ouvido falar tanto de ciência.
De momento os cientistas parecem ter quase desaparecido dos monitores da nossa televisão. Mas, há bem pouco tempo e durante meses, foi “invadindo” as nossas casas todo o tipo de gente da ciência: químicos e biólogos, epidemiologistas, virologistas e pneumologistas, sociólogos e psicólogos. E os médicos e enfermeiros, eles também cientistas de ciência prática. E, à margem da ciência, os mais impagáveis politólogos e comentadores de serviço. A coroá-los lá apareciam os cientistas dos números que, com os seus modelos matemáticos, retratados em gráficos e coordenadas cartesianas, nos iam informando, prospectivamente, da “evolução” da pandemia, tudo conjugado com regiões e idades. E no centro, bem no centro, lá se encontra a Vida. Ou a luta da Humanidade pela sua Vida.E, enquanto isso, a Vida ia olhando para os laboratórios de ciência à espera da criação de uma vacina ou de um qualquer medicamento. Aí, no centro, bem no centro da actividade científica, se encontra a Vida que nem os biólogos conseguem definir de uma maneira precisa. A Vida que se conjuga com a Vida, mas também a Vida associada ao medo de morrer, ao medo da morte. A Vida e um terrível medo, quase pânico por vezes, da morte. A morte que, na sua incerteza, é sempre certa, contrastando com a Vida que, alimentada embora pela esperança, é sempre incerta como bem o constata a sabedoria popular.É a Vida que o pensamento clássico grego categorizava em três formas: a “bios” ou Vida corporal ou biológica, a “psiquê” ou Vida da alma ou da mente e a “zoe” ou Vida do espírito. Três «vidas» em interacção permanente na unidade existencial da Vida. Três “vidas” a que correspondem três formas de saúde: a saúde corporal de que todos vamos falando, a saúde mental de que raramente se fala, e a saúde espiritual que simplesmente se vai ignorando. Correspondentemente, poder-se-á falar de três formas de «estar doente». Se há a muito falada doença física do nosso corpo, há a menos falada doença mental. Mas há também a doença do espírito que, de tão esquecida e desvalorizada, raramente tem honras dos areópagos do mundo dito moderno. Contudo, por aparente paradoxo, é a Vida do Espírito que, saudavelmente ou doentiamente, fala das outras vidas, das outras doenças, corporais e mentais.A Vida é o suporte analógico para a realidade que nos envolve e para as “nossas vidas”. Tantas vidas em que a nossa Vida se vai desdobrando: vida pública, privada e íntima; vida pessoal, familiar e profissional; intelectual e sentimental; vida cultural e vida de compromisso, da responsabilidade e deveres sociais; vida das coisas no significado humano que lhe vamos dando e vida das instituições em que nos integramos – vida comunitária, política, social e económica. E, se fôssemos a falar de uma perspectiva da religião cristã, a lista seria muito mais alongada: vida religiosa, vida cristã, vida da graça, vida sacramental, vida eclesial, vida eclesiástica, vida sacerdotal, vida laical, vida consagrada, vida de pecado, vida eterna.Vamos assim caminhando na Vida vivendo muitas vidas. Vida das coisas com que conjugamos o verbo “ter”, vida dos passos dados, ou a dar, com que preenchemos o verbo “agir” e vida do nosso caminhar com que enriquecemos – ou esvaziamos – o verbo “ser” da nossa existência. Pessoal e socialmente, individual ou colectivamente, somos Vida. Vida com que nos relacionamos com a natureza, com os outros, com o Transcendente e cada um consigo mesmo, as quatro grandes vertentes daquilo que designamos de cultura. Se podemos falar da Vida das vidas, também podemos falar das vidas da Vida. Falar e cuidar. Uma coisa bem simples. As coisas mais simples são, porém, muitas vezes, as mais ignoradas. Tal como acontece com as mais próximas. Até parece que proximidade cega. Bem sabemos, mas fingimos ignorar, que a distância se impõe muitas vezes à visão. A distância… Talvez aconteça isso com a Vida. Se a doença física dos indivíduos é facilmente diagnosticada e assumida nos tempos que correm, já o mesmo não acontece com a saúde mental e, menos ainda, com a saúde do espírito. Mas elas encontram-se sempre connosco. O mesmo se passará com os males da sociedade. Também as comunidades passam por doenças, mas essas serão sobremaneira doenças de valores, que é como quem diz doença do espírito, enredado, tantas vezes, em contradições de que nem sequer terá consciência. De tão próxima, impõe-se aí um maior esforço de distância para poder ser vista com completude. Pensando bem – não será necessário tomar grande distância – facilmente podemos ver que toda a nossa Vida, do princípio ao fim, se encontra irremediavelmente ligada à existência dos outros humanos, mesmo nas coisas mais banais. Habitamos casas que não fomos nós a construir. E, se fomos nós a construí-las, não fomos nós que criámos o material e os utensílios de que nos servimos. Vestimos roupa que não fizemos. E, se a fizemos, não fomos nós que tecemos o pano de que nos servimos. Comemos alimentos que não cozinhámos. E, se os cozinhámos, não fomos nós que inventámos o fogo nem fomos nós que lavrámos a terra. E, se lavrámos a terra, não criámos o arado. E, se o criámos, servimo-nos para isso de instrumentos que outros engendraram. Nem sequer fomos nós que amanhámos as pedras da calçada que diariamente pisamos. Se viajamos, não fomos nós que inventámos o automóvel nem o avião. Outros o fizeram por nós. Se nos sentamos a assistir a um qualquer programa televisivo, não fomos nós que inventámos aquela engenhoca em que se concentram muitas leis da física que também não fomos nós a descobrir. Mesmo as nossas virtualidades mentais reduzir-se-iam a nada se não fosse a linguagem, essa maravilhosa realidade com a qual pensamos, imaginamos, comunicamos na Caminhada da Vida. Mas é também dos outros que recebemos a linguagem tão cheia de virtualidades.Verdadeiramente, vivemos num mundo – físico e cultural – que é um dom, do princípio ao fim da nossa Vida. Vida também ela um dom que, por excelência e gratidão, temos a responsabilidade de guardar e cuidar, particularmente em tempos de maior fragilidade.Hoje bem o sabemos – se é que não somos como uns tantos que andam por aí a negar aquilo se constitui como evidência da racionalidade humana esclarecida – que a morte teria vitimado muito mais gente se não fossem as vacinas que, entretanto, o génio humano engendrou nos sofisticados laboratórios da ciência. Vacinas que, antes de cuidadosos serviços de enfermagem no-las aplicarem, passaram por cuidados sistemas de armazenagem e transporte. É a vida da ciência ao serviço da Vida. É a Vida do Espírito ao serviço da debilidade da Vida biológica.Mas, há contradições humanas que, para serem vistas, também é necessário fazer distância e entrar nas mais misteriosas raízes da Vida do Espírito Humano. Também esta é susceptível de debilidades ou, mesmo, de doença.Sejamos mais objectivos. A Vida está continuamente ameaçada de morte. Quer dos perigos externos quer dos perigos internos inerentes ao nosso sistema biológico. Mas hoje, como nos lembrou há muito Edgar Morin, recentemente falecido, «as nossas vidas estão ameaçadas, não somente por aquilo que naturalmente as ameaça, mas também por aquilo que as protege: a ciência e a medicina.» Dá bem que pensar: ciência e medicina ao serviço da morte! Não será necessário fazer grande distância para podermos constatar que vai morrendo o imperativo «não matarás». A Vida humana, que a razão natural evidencia portadora da dignidade primeira, parece ter perdido sentido e valor básico para muitos e matar é anunciado como direito, seja no berço materno seja no leito de um hospital, humanamente instituído para o cuidado da Vida.Daí a necessidade de Caminhadas pela Vida. Contra ventos e marés, seja a Caminhada da Vida feita sempre de Caminhadas pela Vida. Seja este o grito da Vida do Espírito mesmo quando, ou sobretudo, é frágil a Vida Biológica.Guarda, 13 de Outubro de 2021