Homens, sede Homens
(“Nem tudo o que luz é ouro”/”Nem tudo o que parece é”/ “O essencial é invisível”)
O poeta romano Ovídio contou assim, neste episódio mitológico, a origem de duas antiquíssimas árvores: Há nos montes da Frígia um carvalho junto a uma tília, rodeado de um muro à volta. Certa ocasião, aqui chegaram Júpiter sob aparência humana, acompanhado por seu pai. A mil casas se dirigiram, em busca de local para repousar; mil casas de trancas cerradas ficaram.
Porém, uma acolheu-os. Era, é certo, humilde, com telhado de colmo e canas lacustres. Nela, Báucis, piedosa velhinha, e Filémon, da mesma idade, tinham juntos passado os anos de mocidade, naquele casebre tinham juntos envelhecido. A pobreza, tinham-na tornado leve, assumindo-a e suportando-a com serena tranquilidade. Ora bem, mal os seres celestes chegaram ao humilde larzito e, baixando a cabeça, entraram na pequenina ombreira, o velho trouxe um banco, que Báucis, solícita, cobrira com um pano grosseiro, e convidou-os a descansar o corpo. A tremer, a anciã põe a mesa. Nela são postas as azeitonas bicolores da virginal Minerva e endívias e rabanetes e um certo tipo de requeijão, e ovos levemente mexidos em brasa pouco quente, tudo isto em loiça de barro. Depois disto, fica na mesa uma larga taça de vinho. Sem grande demora, vêm do lume os pratos bem quentes. Vêm depois as nozes, vêm figos secos com rugosas tâmaras, vêm as ameixas e as maçãs perfumadas em largas cestas, e os cachos de uvas colhidos em purpúreas videiras; ao centro, é colocado o alvo mel. E a tudo isto juntam rostos bondosos e solicitude empenhada e generosa. Entretanto, os anciãos veem o jarro, tantas vezes esvaziado, encher-se espontaneamente, e que o vinho crescia por si só. Atónitos com algo tão insólito, Báucis e o medroso Filémon apavoram-se. “Deuses somos”, dizem Júpiter e Mercúrio. Então, o filho de Saturno, com uma voz afável, assim disse:
-Dizei, ancião justo e mulher digna de um esposo justo, o que desejais.- Após trocar poucas palavras com Báucis, Filémon revela aos deuses a decisão que os dois tomaram: “Pedimos para sermos sacerdotes e velar pelo teu santuário. E já que passámos uma vida juntos, que seja a mesma hora a levar-nos aos dois, e que eu nunca chegue a ver a tumba de minha esposa, nem por ela eu venha a ser sepultado.” Os desejos são cumpridos. Detiveram a custódia do templo enquanto lhes foi dado viver.
Um dia, acabados pelos anos e pela velhice, estando diante da escadaria sagrada a contar o sucedido neste local, Báucis observa Filémon a cobrir-se de folhas e Filémon vê igualmente Báucis a cobrir-se de folhas. E, embora já lhes crescessem copas sobre os dois rostos, iam trocando palavras enquanto puderam. “Adeus, amor!”, disseram em simultâneo; e em simultâneo a casca cobriu e ocultou-lhes a boca.
Ovídio, Metamorfoses, VIII, 620-719. Trad. de Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Cotovia, 2014, pp. 214-217 (texto adaptado, com supressões).