Quando as crónicas se fazer ao decorrer dos dias, é natural que por elas perpassem sentimentos e impressões muito pessoais. Algumas podem ser interessantes e é sempre bom partilhá-las com os leitores.
Quando, há 30 anos fui pela primeira vez aos Açores, não se imaginava que estas ilhas perdidas no meio do Oceano se assemelhariam ao paraíso pelas paisagens e pelas suas gentes, e que se tornaria o destino exótico de muita gente em demanda de sensações fortes que podem dar um tónico ao ramerrame do quotidiano vivido muitas vezes a milhares de quilómetros.
No país onde vivo, as pessoas conheciam estas ilhas apenas pelos boletins meteorológicos que ouviam diariamente, pelos quais são informados do tempo que é a personagem mais importante e que entra em todas as conversas a cada hora do dia. Sabiam que era nestas ilhas situadas no meio do Oceano Atlântico, entre a Europa e a América, que se faz e desfaz o tempo, sob os caprichos do designado Anticiclone dos Açores.
É verdade que as viagens formam a juventude. Mas quando uma viagem se entrecruza com aquela que foi realizada aos Açores por um grande escritor como Raúl Brandão, há precisamente 100 anos, consignada no maravilhoso livro que designou “AS ILHAS DESCONHECIDAS, NOTAS E VIAGENS,” temos a sensação de não estarmos sós, e, eu diria, estamos em excelente companhia.
Não foi num barco a vapor que aportei na ilha de São Miguel, nem percorri as ilhas de burro ou de carroça por caminhos estreitos de montanha. Se é verdade que os meios de comunicação foram totalmente melhorados, muitos anos após a passagem de Raúl Brandão por aquelas paragens, e as relações sociais totalmente modificadas, cem anos após a sua visita, as paisagens permaneceram iguais, soberbas e deslumbrantes.
As ilhas dos Açores tornaram-se, entretanto, bem conhecidas e têm sido o destino turístico de gente de todas as origens, ultrapassando os nacionais que aqui começaram a vir antes de se lançarem, também eles, ao largo, começando a sentir que eram igualmente filhos dos grandes navegantes e que o mundo lhes pertencia.
Tal como Raúl Brandão, também eu me deslumbrei do alto do Miradouro da Cumieira ao observar o lugar das Sete Cidades. Leio no seu livro que me acompanha: “Um ah de assombro, um sentimento novo, um vago sentimento de surpresa… Pela primeira vez na minha vida não sei descrever o que vejo e o que sinto. Conheço os lagos voluptuosos da Itália e os lagos adormecidos da Escócia: o lago das Sete Cidades não se parece com nenhum outro que tenha visto. Existe ou sonhei esta água parada, esta grande cova selvática empoada de roxo, com aquela serenidade a ferros lá no fundo? Esta beleza estranha que não nos larga e nos contempla ao mesmo passo que a contemplamos”
Também eu revivi os mesmos sentimentos perante paisagens que ainda não foram alteradas e que parecem ter ficado intactas na sua exuberância e vigor. Tal como Raúl Brandão, também eu invoquei de joelhos a transcendência ou as forças telúricas do cosmos para que o magma entranhado na terra não se revoltasse à minha passagem e me deixasse contemplar o azul e o verde das suas águas lagunares.
Tão absorto que estava na observação das belezas naturais que quase senti uma mão a empurrar-me para o precipício e que poderia desaparecer para sempre e me confundir com a deslumbrante paisagem. Fiz, no entanto, confiança na mãe natura para me colocar num lugar onde poderia observar a panóplia de cores na gradação dos verdes, cinzentos e azuis que me deram a mesma paz interior certamente perpassada pelo espírito de Raúl Brandão ao contemplar esta natureza ímpar.
A ilha do Corvo, como sempre, é visitada muito à pressa. Terei de lá voltar com mais tempo. O texto que Raúl Brandão escreveu sobre o Corvo impressionou-me: “Aqui acabam as palavras, aqui acaba o mundo que conheço; aqui neste tremendo isolamento onda a vida artificial está reduzida ao mínimo, só as coisas eternas perduram.”
Raúl Brandão permaneceu ali duas semanas. Quando lá voltar, será em modo de peregrinação interior, talvez em retiro espiritual, ao menos para compreender a razão pela qual Raúl Brandão, no seu testamento, pediu para ser sepultado nesta ilha. Ele gostaria de ter para sempre a companhia de homens puros, serenos, felizes e que cultivavam o espírito humanista e comunitário, desejo que o animou durante a vida e que pretendia usufruir após a morte.
Joaquim Tenreira Martins