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As gentes de cá.

Os dias da cidade

Não nasci na cidade da Guarda, mas assumo-a hoje como a minha cidade. Nasci perto. Meros 10 quilómetros que eram, durante a infância, 10 obstáculos quase intransponíveis. Depois estudei cá uns anitos, fui até Lisboa e voltei com família já constituída. Podia ter ficado por lá. Optei contudo por voltar pois aqui sentia as raízes, aqui bebi a cultura, aqui me tornei pessoa. Não me arrependo. Hoje sou guardense e gosto de divulgar o que nos identifica. A tradição, a identidade dos que viveram por aqui antes de nós e especialmente as gentes que cá nasceram ou que adoptaram a nossa cidade como sua e se distinguiram no campo da cultura.
Quando, há uns anos atrás, comecei a leccionar a disciplina de Literatura Portuguesa tentei levar os meus alunos a ler autores da Guarda (já antes o fazia com os de Português). Nessa altura dei-me conta que desconhecemos muito do que é nosso e muitos dos que divulgaram a nossa civitas. Hoje, quando pergunto aos meus alunos que autores conhecem ligados à Guarda, estranhamente e lamentavelmente, oiço apenas o nome de Augusto Gil e da sua “Balada da Neve” (e o que nós perdemos ao desconhecer o resto da obra do autor!). E, se falo de outros nomes, olham para mim com cara de estranhamento. E é pena porque nós somos a cidade em que nascemos ou vivemos.
Defendi e defendo que devia haver uma divulgação maior dos nossos autores e que devíamos pôr de lado certos preconceitos que nada abonam em nosso favor e que só revelam fanatismo por parte de quem nos olha de esguelha quando falamos de alguns autores que se dedicaram à escrita e que divulgaram muitas coisas da nossa terra. Bem, em abono da verdade, alguns alunos ainda citam Vergílio Ferreira por causa da biblioteca da Escola que frequentam, outros, mas já mais a medo, citam Eduardo Lourenço, lembrados da Biblioteca Municipal. Há dias perguntei em duas turmas se alguém já tinha ouvido falar em Rui de Pina e, dos cerca de sessenta interrogados, nem um tinha ouvido falar. E mais: quando perguntei se nunca nas aulas de História tinham falado da capela dos Pinas, na Sé Catedral, a resposta foi a mesma. Não acredito que os professores de História, ao referirem-se à Sé, não se tenham referido à família Pina e à sua importância para a nossa cidade. O facto deve ter a ver com a cultura juvenil da actualidade mais virada para o momentâneo. O que importa é aquilo que se vive agora. O resto é para esquecer. Honestamente, também se deve à corrente didáctica que defendia que os meninos não deviam decorar nada. Mas adiante.
Como os guardenses todos sabem (?) este ano falou-se de Nuno de Montemor. De quem? –  perguntaram os meus alunos quando lhes mencionei o nome? Nunca tinham ouvido falar! Ainda estupefacto perguntei: e do Lactário Dr. Proença? Aí surgiram dois ou três que tinham frequentado lá o infantário e um lembrou-se então que, à entrada, há uma estátua do “tal senhor”! Mas não sabiam quem foi nem o que fez na e pela Guarda. Também não gostei da reacção de alguns quando, depois de lhes sugerir a leitura de algumas das suas obras, lhes falei do autor e disse que era o pseudónimo de um Padre. “Se é Padre não me interessa ler!” Mas – insisti eu – o que é que a literatura e os livros têm a ver com a “profissão” dos autores? E a resposta revelou-se lamentavelmente sectária por isso nem a transcrevo. Que mundo estamos a construir, afinal? Admiramo-nos da proliferação e da quantidade de adeptos que o Estado Islâmico consegue ter hoje em todo o mundo, mas nem nos damos ao trabalho de pensar que essa mentalidade, se existe, é culpa nossa. E que nós somos fundamentalistas nas nossas opiniões sobre certos sectores da sociedade em que viveram e foram criados os nossos pais. Saramago, ateu confesso, serviu-se de textos bíblicos para divulgar, à sua maneira, a sua ideologia e nunca, que eu saiba, rejeitou fundamentalisticamente a matriz cristã da nossa civilização e literatura.
Se queremos construir um futuro cimentado em valores sociais e morais não devemos rejeitar o que nos legaram os nossos escritores. Mais: era bom que os divulgássemos e déssemos a conhecer aos nossos jovens para eles terem um apoio que leve a nossa cidade a atingir um lugar de destaque no país. Isto é válido para os escritores do passado e é-o igualmente para os escritores novos que surgem no lugar em que vivemos e que, muitas vezes, nos passam ao lado. A cultura continua a ser um elemento de ligação entre gerações, por isso termino estas leves considerações com a citação de uma frase de António Lobo Antunes: “A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

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