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As Eleições Norte-Americanas de 2024

José Augusto Garcia Marques
Juiz Conselheiro do STJ (Jubilado)

Nestes dias perturbados, marcados pela violência de duas guerras devastadoras na Ucrânia e no Médio Oriente, a que se juntou a fúria da Natureza aqui às nossas portas, com o céu a desfazer-se em torrentes de água que trouxeram a morte a centenas de pessoas na comunidade valenciana, estamos ansiosamente à espera das eleições norte-americanas. As sondagens continuam a mostrar os candidatos em situação de empate técnico. As particularidades do sistema eleitoral norte-americano levam a concluir que tudo vai depender dos resultados em sete Estados (os falados swing states): Arizona, Carolina do Norte, Geórgia, Michigan, Pensilvânia, Nevada e Wisconsin. Frente a frente, o partido democrata, com Kamala Harris como candidata, e o partido republicano, de Donald Trump. Como escreve João Maria Jonet, no Expresso, “ambos os partidos apresentam fortes argumentos de favoritismo, o que faz com que nenhum seja favorito”.
Dois candidatos em tudo diferentes – e nenhum deles entusiasmante. Trump é um ambicioso, egocêntrico e mitómano, a quem interessa o espetáculo e a persona que criou de homem providencial e até abençoado, para o cumprimento de uma missão. Invocando a intervenção divina, explica a razão por que saiu praticamente ileso do atentado que sofreu na Pensilvânia. Kamala é uma vice-presidente que, depois de ter sido uma magistrada respeitada e competente, cumpriu discretamente o seu mandato e se viu, à última hora, obrigada a substituir o candidato do seu Partido, o idoso e diminuído Presidente Joe Biden.
Depois de uma fase de empolgante subida de popularidade, imediatamente posterior à sua entronização como candidata à presidência e que culminou no debate, que venceu, contra Donald Trump, seguiu-se um período de estagnação e de passividade. Um especialista, conhecedor das campanhas eleitorais americanas, acrescenta que não percebeu o porquê da relativa inatividade na primeira semana de outubro, na sequência de um setembro deslumbrante. Entretanto, sondagens mostram que Trump galgou terreno nos sete estados-chave. Na maioria dos swing states, o eleitorado oscila entre os dois partidos, com um vantagem muito ligeira para o republicano, cada vez mais agressivo e, até, insultuoso, especialmente para com as mulheres. Embora tal vantagem seja inferior à margem de erro, a verdade é que parece refletir um desempenho em crescendo, ao contrário de Kamala. Como observa o correspondente do Expresso nos EUA Ricardo Lourenço, “sinal de um otimismo crescente, Trump passou a fazer campanha à margem dos estados-chave, na tentativa de alargar a base dos apoiantes”. A candidata democrata, em contrapartida insistiu nas iniciativas junto do eleitorado jovem e conservador moderado, incapaz de se reconhecer no líder do atual partido republicano. Atente-se no facto de ter havido uma inversão sociológica nos eleitorados dos dois partidos. Tradicionalmente, o Partido Republicano era o partido das elites, das classes mais possidentes e instruídas, sendo o Partido Democrata o porto de acolhimento do voto dos trabalhadores e das classes menos letradas. Com as presidências de John Kennedy, de Bill Clinton e de Barack Obama, todos intelectualmente muito dotados, bons oradores e formados em Universidades de primeira, e com a deriva cada vez mais radical dos republicanos para a propagação de princípios populistas e para a captura desse eleitorado, tendência essa acentuada com o mandato e as campanhas de Donald Trump, a situação tem-se vindo a inverter, sendo hoje os democratas mais votados nos grandes centros urbanos pelo eleitorado mais culto e cada vez mais ignorados nos meios rurais e industriais. É por exemplo o que se passa na Pensilvânia, onde Kamala Harris tem uma larga vantagem em Filadélfia e nos centros urbanos, mas está em manifesta inferioridade nas zonas rurais. Por outro lado, o eleitorado masculino, ao invés do feminino, vota maioritariamente em Trump.
Também em alguns swing states do norte, como o Wisconsin, os eleitores afro-americanos – designadamente os homens -, estão a votar menos do que era costume, no Partido Democrata e a deslocar-se progressivamente para Trump. Também se receia que seja isso que poderá vir a acontecer na Pensilvânia, um dos Estados-chave mais relevantes pelo número de grandes eleitores que elegerá para o Colégio Eleitoral (19). Na verdade, como sublinha o enviado do Expresso aos EUA, Ricardo Costa, a propósito da Pensilvânia: aqui confluem todas as tendências demográficas, económicas e sociais que fazem deste estado o mais avançado laboratório político do país.
Uma das fatias mais disputadas pelos candidatos é a dos eleitores hispânicos. Só na Pensilvânia o número de hispânicos adultos ultrapassa os 600 mil. Trata-se de um objetivo fundamental, se tivermos em atenção a diferença que deverá separar os dois candidatos: menos, porventura bem menos, de 100 mil votos. Com efeito, “numa corrida que será decidida nas margens” todos os votos contam. Daí a importância dos episódios sobre “Porto Rico e o lixo”. Explicando: numa ação promovida pela campanha de Trump, milhares de apoiantes seus encheram o Madison Square Garden. Na enxurrada de declarações racistas e misóginas, habituais nos comícios de Donald Trump, sobressaiu o comediante Tony Hinchcliffe que chamou Porto Rico “ilha flutuante de lixo”. Até Trump se distanciou de tal declaração em posteriores comícios realizados na Pensilvânia, atenta a força eleitoral dos porto-riquenhos no Estado em causa. A candidatura de Kamala Harris tinha motivos para ficar feliz com a “barbaridade” proferida pelo referido apoiante do candidato republicano. Eis senão quando, o Presidente Joe Biden, famoso pelas suas gaffes, ripostou de pronto, dizendo que de lixo em Porto Rico apenas se poderia falar a propósito dos eleitores de Trump. Enfim, um tiro no pé, que deplorável para a campanha democrata, como Kamala se apressou a salientar e, sem muito sucesso, a tentar corrigir.
As consequências do resultado das eleições norte-americanas que, provavelmente, só serão conhecidos largos dias ou, mesmo, semanas depois de 5 de novembro, já estão a ser contestados e postos em causa, por antecipação, pelos apoiantes de Donald Trump, cujos antecedentes na matéria são bem conhecidos a partir dos tristes e criminosos episódios de 6 de janeiro de 2021. Na verdade, em face desses antecedentes quanto à recusa de aceitar os resultados das eleições de 2020 e tendo presente o histórico deplorável dos republicanos na matéria, “há uma coisa que as autoridades federais dizem não ser capazes de prever ou controlar: o que Trump e os seus aliados poderão fazer na noite da eleição enquanto os votos estão a ser contados”. Se os democratas ganharem por uma diferença pequena, será que as hostes trumpistas vão manter a dignidade? Estou absolutamente convencido de que não. De um homem que manifesta um desprezo total pelas mulheres e que, para a sua adversária, reserva os piores insultos, nada se pode esperar de positivo ou ético.
Resta-me acabar com o veemente apelo plasmado num dos melhores slogans de campanha, recordado pela jornalista Teresa de Sousa: “Be a man, vote for a woman”, ou, em português, “sejam homens, votem numa mulher”.

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Lisboa, 3 de novembro de 2024

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