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AS CONTRABANDISTAS

Histórias que a Vida Conta

Vinham pela tarde, subiam as escadas de granito nas traseiras da casa e, chegadas ao último degrau que abria para uma espécie de patamar discreto, sentavam-se, cansadas. Dizia-se que eram irmãs. Sempre vestidas de preto, eram, porém, nessa postura de quase quadro hiper-realista, bem diferentes nas silhuetas que desenhavam: uma, alentada e maciça; a outra mais miúda e seca de carnes. Eram uma presença algo frequente na nossa casa da Guarda, por finais da década de quarenta o que, nos meus seis ou sete anos, dados a efabulações misteriosas, muito me intrigava. Falavam um português que, aos meus ouvidos atentos de espiãozinho caseiro, parecia esquisito, diferente. Perguntadas, diziam-se portuguesas, mas – vim a saber mais tarde – a vida que levavam em busca do sustento e de algum ganho para a vida, fazia delas exemplos acabados daquela espécie de “transumantes” humanos que, cruzando constantemente a fronteira, ali tão perto, povoavam, sempre em movimento clandestino, toda uma faixa de território “híbrido” entre Portugal e Espanha: a “raia”. Elas eram, de corpo e risco, como já todos perceberam, (as) contrabandistas.
Via-as como umas personagens vindas de outros mundos – de que começava a ouvir falar – com vidas tecidas de experiências temíveis e temerárias. Miúdo que era, aproximava-me, sem risco de reprimenda, daquelas figuras intrigantes. E a estranheza adensava-se porque delas emanavam odores fortes e adocicados, envolventes e singulares como se saídos da lâmpada de Aladino… E, mal chegavam, num ápice, eu era engolido pela roda das senhoras da casa – minha mãe e tias – acrescentada pelas nossas empregadas à época. E eis que começava uma espécie de espectáculo para aquele mini circo com o que me pareciam verdadeiros passes de mágica: a mulher mais forte começava a fazer um exercício malabarístico que a fazia emagrecer a olhos vistos e que aos meus olhos maravilhados fazia dela uma verdadeira “extra terrestre”: revolvendo saia e corpete ia tirando de dentro dela, do peito e do ventre avantajados e das ancas volumosas, mil e uma coisas de todo inesperadas e logo filhadas pelas mãos cobiçosas do público feminino: ele eram combinações, soutiens e outras peças do vestuário interior feminino. Mas havia também, numa mistura surreal, cintos, sapatos, chinelos, pantufas, calçadeiras, mantilhas e lenços de pescoço, e, até se não me engano, um ou dois cortes de seda para vestidos… Habilmente protegidos entre as roupas também vinham frascos de perfume e de verniz para as unhas, caixinhas de pó de arroz, batons, pastas dentífricas… Tudo as duas mulheres iam depositando na varanda, feita montra, a que a escada dava acesso. Mas também havia guloseimas: os inevitáveis caramelos, chocolates e rebuçados, e alguns chás e infusões muito elogiados. E eu, ignorado e meio escondido, pasmava com o número de ilusionismo protagonizado pela senhora gorda que se ia “desfazendo” perante os meus olhos em mil pedaços de tentação.
À volta, as eventuais clientes iam regateando os preços e as falas cruzavam-se, atabalhoadas entre perguntas e ofertas, discussão de virtudes e belezas e protestos de insatisfação, promessas de mais aquisições se… E ao fim de muita balbúrdia verbal fechavam-se pequenos negócios a satisfazer pequenos prazeres com que, naqueles meios e naqueles tempos, se cosiam as pequenas felicidades provincianas. Era a novidade, a diferença, a peça “única”, a exibição de um luxo vindo de fora, a satisfação de alguns apetites fúteis mas que almofadavam destinos que a distância dos grandes centros tornava por vezes demasiado áridos e bisonhos. E além disso, as contrabandistas contavam histórias, histórias para mim fascinantes, de fronteiras passadas a salto, ladeiras íngremes subidas num fôlego, valados e silvedos galgados a custo, lamaçais onde as pernas se enterravam até ao joelho, ribeiros atravessados de noite, fugas arriscadas aos guardas-fiscais, que as emboscavam em lugares esconsos, à chuva ou à neve. Mas, apesar disso, aceitavam fazer descontos consideráveis, porque eram essas as regras do jogo: vender rapidamente o produto do contrabando, libertando-se da carga que as vergava e fazendo algum dinheiro que lhes permitisse continuar viagem e ir bater a outras portas.
E um dia aconteceu um episódio interessante: reinava o alarido do regateio quando se ouviu o chiar do portão a abrir-se e o meu Pai entrou no pátio. Cumprimentou as senhoras presentes e dirigiu às contrabandistas um aceno amável. Perguntou se não traziam cremes de barbear “La Toja”. Que sim, disse logo a mais magra. Perguntou quantos queria e quando o meu pai disse que podiam ser dois ou três, tirou as embalagens de dentro de um cesto de verga (igual aos de ir às compras ao mercado, para disfarçar). Percebi então que os produtos para homens estavam metidos no cesto e não dentro das roupas, bem junto ao corpo da senhora grande e forte, que, entretanto, se tinha metamorfoseado numa mulher proporcionada, quase elegante e ágil de movimentos.
Respondendo à pergunta do meu pai, a mais pequena, que era quem fazia as contas, disse-lhe qual o preço das três embalagens do creme e dos pares de meias que ele escolhera. Uma das minhas tias ainda disse: “Oh Armando, olha que é muito caro!”. No entanto, o meu Pai tirou a carteira e pagou sem protestar o preço que lhe era pedido. Segui-o para dentro de casa e contei-lhe que as senhoras tinham negociado todos os preços propostos. Lembro-me da resposta que me deu, quando já ninguém nos podia ouvir: “Não se deve regatear com quem corre os riscos e vive os sustos por que estas mulheres passaram! Se se acha que é excessivo, não se compra: mas não se discute e fica mal pedir desconto”.
Como todos sabemos, os tempos mudaram. Hoje usufruímos da “livre circulação de pessoas e bens”. Mas não deixa de haver uma pontinha de nostalgia quando recordamos histórias do contrabando puro e duro que, se nalguns casos conhecidos ajudou a construir fortunas e foi “feliz”, em todos eles, deixam sempre um travo vivo de aventura e de conquista, porque conseguido a peso de coragem e de manha iniludíveis.
E lembra-me aqui aquela história já velha, que muitos dos meus leitores certamente conhecem, mas que não resisto a contar a título de ilustração: “Um jovem passava, com suspeita regularidade, a fronteira com Espanha, sempre de bicicleta. Horas depois regressava e, na bicicleta, trazia um saco. Os guardas-fiscais abriam o saco e verificavam, com espanto, que vinha cheio de terra. Como o episódio se repetia, analisavam a terra, meticulosa e demoradamente. Sempre em vão. Era apenas terra comum, por vezes areia. Um dia, o jovem anunciou-lhes que ia emigrar para França, pelo que deixariam de o ver por ali. Intrigado, o guarda, que já o conhecia bem, perguntou-lhe: “Ouve lá, pá, tu fazes contrabando, não fazes?” “Faço”, respondeu o jovem. “Mas de quê, pá?” perguntou o guarda, acrescentando: “Juro-te que não te acontece mal nenhum se me disseres, mas é que afino com esta coisa de não saber o que é…?”. Sereno, com um sorriso maroto nos lábios, o rapaz atirou: “De bicicletas, pá!”.
Lisboa, 10 de Abril de 2019

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