Quando este texto chegar ao leitor, estará a abrir, em Roma, a primeira sessão do Sínodo cujo percurso se iniciou em 2021.
Para esse percurso foram chamados a participar «todos, todos, todos», individualmente ou através de assembleias locais, paroquiais, diocesanas, nacionais e continentais. «Todos, todos, todos», católicos e não católicos, crentes e não crentes que, de boa fé, poderão ajudar a Igreja, Povo de Deus, a conhecer-se melhor e a ouvir a voz dos tempos. Nunca terá havido na Igreja, nem no mundo das sociedades humanas, um tal desafio, só possível graças à Fé e Esperança de um Papa que confia na Caridade de «todos, todos, todos» que, em comunhão, fazem a aprendizagem da sinodalidade da Igreja.
Na primeira fase do processo sinodal a participação e empenho das comunidades terá variado muito, certamente conforme os esclarecimentos possíveis, a fé vivida e a profundidade do «sentir com a Igreja» de cada uma e de cada um. Creio que essa fase inicial terá passado à margem de muitos. Seja como for, agora inicia-se outra fase, aquela em se concentram o sentir e o pensar das comunidades cristãs, locais, nacionais e continentais. Estar atento ao que se vai passando em Roma é também sinodalidade em aprendizagem. Esta é a razão de ser deste texto. Aprendiz que sou, atrevo-me a integrar-me no caminho, neste caminhar juntos e de escuta. Importa estar em escuta ao que se irá passando em Roma e ao que vai dizendo o mundo dos humanos sobre o caminho. Enquanto se faz escuta à voz do Espírito Santo que, para quem tem fé, acompanha a vida da Igreja de Jesus Cristo, Filho do Eterno Pai.
O “Instrumentum laboris” (“Instrumento de trabalho”), preparado para os participantes presenciais nesta sessão sinodal, foi divulgado no passado dia 20 de Junho. Não o encontrei em qualquer livraria, como bem gostaria, mas está disponível, para quem o pretender, nos meios mediáticos modernos. Fui lê-lo com alguma atenção, mas a exigir uma leitura mais profunda e atenta.
Depois de um prefácio em que se evoca o percurso feito até ao presente, o documento é constituído por duas partes distintas: um texto e quinze fichas de trabalho. O texto contém duas partes. A primeira, (A), destacando a experiência realizada ao longo dos dois anos preparatórios, centra-se na ideia de Igreja sinodal, nas suas características e nos caminhos a percorrer para que ela seja cada vez mais sinodal. A segunda, (B), refere as três questões prioritárias para a Igreja sinodal: a «comunhão», a «missão» e a «participação», acompanhadas por três perguntas que, independentemente do que resultar do trabalho da assembleia sinodal iniciada no dia 4 de Outubro, importará que «todos, todos, todos», de perto ou de mais longe, continuem a procurar respostas em comunhão com os trabalhos desenvolvidos em Roma. Para o quadro da «comunhão» pergunta-se: «Como podemos ser mais plenamente sinal e instrumento de união com Deus e de unidade do género humano?» Para a questão da «missão», pergunta-se: «Como partilhar dons e tarefas no serviço do Evangelho?» Finalmente, no âmbito da «participação», pergunta o documento: «Que percursos, estruturas e instituições numa Igreja sinodal missionária?» As quinze fichas de trabalho apresentadas no documento constituem a expressão particularizada de cada uma destas questões genéricas.
Todos o ouvimos e teremos lido: a sinodalidade tem raízes na igual dignidade de todos os baptizados que são corresponsáveis, juntamente com os ministros, pela vida da Igreja virtualmente presente na vida das igrejas locais, onde a comunhão na caridade se objectiva e a corresponsabilidade se concretiza. Aprender a sinodalidade é preciso. Por mais complexa que ela seja, aprender a sinodalidade, é preciso e conveniente. É oportuno. É necessário. Aprendizagem é tanto mais necessária quando estamos perante um modo peculiar de viver e agir na Igreja que qualifica a natureza do Povo de Deus que caminha e escuta.
Bem se vê, a sinodalidade é «dom e tarefa». «Tarefa» de «todos, todos, todos» nunca será completa e, muito menos, perfeita. Aqui, como sempre na vida dos humanos, o caminho faz-se caminhando. Creio que estamos perante uma «dimensão constitutiva da Igreja», um estilo eclesial específico, que implica, em muito, uma conversão pessoal e comunitária, sabendo todos como é difícil abandonar uma espécie de centralismo individualista paroquial incapaz de se abrir a outras comunidades cristãs, periferias da sua.
Este Sínodo é precisamente sobre a sinodalidade da Igreja e, por isso, implica todos os baptizados. E o problema começou – e começa ainda – aqui. Paira sobre muitos, na Igreja e fora dela, a sombra de imagens antigas de uma Igreja identificada com os bispos e presbíteros, mesmo considerando as dezenas de anos passados após o Concílio Vaticano II. Aprender a ser Igreja, é preciso. É preciso aprender nas igrejas particulares – e entre elas – onde importa desenvolver e cultivar uma dinâmica sinodal de comunhão que propicie a escuta humilde, o diálogo e a corresponsabilidade, impregnadas de fé e caridade.
Por mais que se vá dizendo o contrário, nota-se facilmente que, apesar do esforço louvável de muitos sacerdotes, as comunidades se encontram ainda impregnadas da antiga dicotomia clérigos/leigos, por mais que o Papa venha dizendo, desde há muito, que o clericalismo é um dos maiores males de que padece actualmente a Igreja. E, todos o sabemos, esta clássica dicotomia repercute-se em todos os aspectos da vida eclesial. Pelo grande peso da tradição, mas também pelo comodismo fácil, pela ignorância e falta de cultura laical de muitos, pelo medo de incompreensão e risco de divisões de outros, por simples conservadorismo e até pelo receio de perder poder.
Mas outra dicotomia se introduziu na Igreja e fora dela, importada, para muitos, das situações sociais do mundo moderno. Chamemos-lhe, à semelhança de outros, conservadorismo e liberalismo progressista. A dicotomia andou e anda por aí, com prejuízo, como julgo, para a própria dinâmica sinodal.
Como é sabido, a controvérsia começou logo com o lançamento do próprio Sínodo. Se os liberais o vêem como uma oportunidade para iniciar reformas bloqueadas, após o Vaticano II, pelos papas anteriores, os conservadores temem que a sinodalidade, assim entendida, constitua uma porta aberta a forças de pressão apaixonadas que possam destruir os alicerces da doutrina. Se os primeiros parecem contar com o apoio da opinião publicada para as reformas que propõem, os segundos respondem que a Igreja não é uma democracia. Se os conservadores temem que a assembleia sinodal ceda às forças de pressão, os progressistas receiam que o Sínodo seja mais uma ocasião perdida de a Igreja se reformar. Talvez a uns e outros falte a humildade da escuta e do caminhar juntos. Ou até a fé e a caridade sem a qual não pode haver discernimento. Mas o Espírito Santo lá tem os seus caminhos. Ou, como diz o povo «Deus escreve direito por linhas tortas.»
Acabo de adquirir um livro recente do jovem teólogo alemão Michael Seewald intitulado “O Dogma em Evolução: Como se desenvolvem as doutrinas da fé.” Encontra-se na estante para uma próxima leitura, mas, vindo a propósito, deixo ao leitor o último parágrafo: «O que Gerhard Ebeling refere como crítica, a saber, que a Igreja Católica se apresenta marcada por “uma dupla tendência – um conservadorismo radical e um evolucionismo não menos radical” – é, do ponto de vista católico, o mais belo elogio que se pode receber. Um são conservadorismo permite à Igreja, milénio após milénio, continuar a ser a mesma. Já um são evolucionismo permite que a Igreja se mantenha sempre jovem. Necrologias da Igreja já foram escritas muitas. Mas a Igreja sobreviveu a todos os seus autores.»
A nossa fé é bem frágil comparada com a virtualidade do Espírito. E a nossa caridade é bem pequenina para sabermos escutar com humildade a voz do próximo. Num mundo incerto e imprevisível, para quem tem fé, só o Espírito Santo é certo, embora também Ele imprevisível.
Guarda, 27 de Setembro de 2023.