Antes parecia não existir. E os média ignoravam-na.
A descoberta mediática chegou após as últimas eleições: a seca é uma realidade em Portugal. E grande. Quando não chove, ou se mostra timidamente – e as albufeiras vão minguando, e os vegetais vão murchando, e os animais definhando – outras chuvas se levantam. Ou, sem serem vistas, já se alevantaram há muito. Chuvas outras, que tomam o lugar das primeiras.
Foi em Novembro e eu anotei. A Agência Europeia do Ambiente divulgou um relatório em que expunha os riscos da poluição por partículas finas que, em 2019, terão causado 307 mil mortes prematuras na União Europeia. Em Portugal, estas partículas finas suspensas no ar com um diâmetro inferior a 2,5 micrómetros estarão associadas a 4900 mortes prematuras. Se acrescentarmos outros poluentes como o dióxido de azoto e ozono, o número de mortes causadas pela poluição subirá para 5700.
Terá sido nos primeiros anos do, então, Ensino Liceal, que ouvi falar de “poeiras atmosféricas” que, normalmente minúsculas e invisíveis, entravam na composição do ar. Até então, pensava eu que a poeira era uma coisa estranha ao ar e o ar seria uma realidade qualquer mais subtil de que se alimentava a vida. Aprendi então – não sei se ainda se aprende assim – que sobrancelhas e pestanas tinham a função de proteger os olhos. As sobrancelhas impedindo a entrada para os olhos da humidade da transpiração e da própria chuva e as pestanas constituindo-se como uma espécie de vassouras protegendo-os das poeiras atmosféricas e de eventuais pequenos insectos. O mesmo acontecia, assim se dizia naquela aula de Ciências, com os pêlos do nariz. Constituindo uma primeira barreira do sistema defesa do organismo, dificultando assim o avanço de pequenas partículas, eles tinham por função filtrar o ar e proteger os órgãos internos dessas poeiras provenientes do exterior.
– Mas, se é preciso travar as poeiras para que não sejam respiradas, então elas não fazem parte do ar. – Ingenuidade minha. Relacionando a vida com o ar, lembro-me de ter objectado deste modo ao professor de Ciências Geográfico-Naturais. Era assim que então se chamada a disciplina. O professor não terá utilizado o termo “ecologia”, que ainda não teria entrado na linguagem corrente, mas foi com a sua resposta, alicerçada com exemplos, que tomei um pouco consciência de que poderia haver problemas graves com o ar que vamos respirando.
Até então as poeiras, para mim, eram exclusivas da terra, ocasionais, embora permanentes, produzidas pelos ventos que levantam o pó das tapadas e caminhos, pelo homem trabalhando a terra ou pelos animais na cadência da marcha, umas vezes tranquila e outras bem apressada. E até pelas aves esgaravatando a terra à procura de alimento. Desde aquela aula, as “poeiras atmosféricas” alargaram-se aos automóveis na estrada e aos aviões que atravessavam os céus.
Havia circunstâncias em que eu via poeiras atmosféricas. Via, como ainda hoje as poderemos ver, quando uns raios de luz nos entram em casa pela fresta de uma porta ou janela. Criança que era, gostava de brincar com elas e admirar os seus movimentos formando ondas inquietas ou rendilhados originais em estranho movimento. Não deixavam de ter a sua beleza, à medida que nelas se ia reflectindo a luz exterior. Transformava-as, então, numa espécie de brinquedo, desafiando-as na bailação sacudindo as mangas que me cobriam os braços. E sempre elas respondiam ao meu desafio, dançando com maior intensidade. Depois iam ganhando sempre o jogo, aninhando-se, aqui e ali, pelo caminho transformadas em pó na mobília da casa. Aí, bem visíveis, a pedirem limpeza, já se vê. Mas isso era a prova de que as poeiras pertenciam à terra e não ao ar. Assim pensava na ingenuidade da minha meninice.
Hoje – é a Agência Europeia do Ambiente que alerta – a poluição atmosférica constitui o maior risco ambiental para a saúde na Europa e uma das principais causas de morte prematura. Andamos à chuva e vamo-nos molhando como crianças inconscientes a jogar a bola enquanto um chuvisco miúdo lhe vai encharcando a roupa. Depois, para a criança poderá vir uma simples constipação, mas, para todos, lá virão as doenças cardíacas e os acidentes vasculares cerebrais, que são o terreno para muitas mortes prematuras.
No livro “Uma biografia da luz”, José Tito Mendonça escreve: «Durante todo o dia estamos no chuveiro, apanhamos duche o ano inteiro. Mas não são gotas de água, são partículas, que nos entram pela cabeça e nos saem pelos pés, ou ao invés. Parte dessa chuva é vista pelos nossos olhos, de maneira directa como os fotões da luz solar, ou de maneira indirecta como os electrões que criam as auroras boreais. A outra parte é vista pelos instrumentos, como no caso dos raios cósmicos que são essencialmente protões, ou no caso dos neutrinos. Quanto aos gravitões, ainda ninguém os viu, mas devem andar por aí, pois existem provas indirectas da sua existência.»
Deixemos para os especialistas o que sejam esses fotões, electrões, protões ou neutrinos, e também os gravitões que «ainda ninguém viu, mas devem andar por aí, pois existem provas indirectas da sua existência», e, por instantes. deixemo-nos inebriar de admiração perante a visão desta realidade, o infinitamente pequeno do mundo sub-atómico. Depois mudemos de cenário e olhemos bem para a situação das nossas albufeiras. Elas encarnam uma espécie de infinitamente grande. O infinitamente grande de um vazio trágico contrastante com a voragem, infinitamente grande também, com que exploramos a Terra e conspurcamos o ar que respiramos e que nos vai matando, enquanto a água nos vai faltando ou também ela se vai conspurcando.
Não, as catástrofes naturais nem sempre são tão naturais como julgamos. Com elas e nelas estão muitos dedos das nossas mãos.
Ver. É bom ver! Não ver. É bom não ver! Ver. É mau ver! Não ver. É mau não ver!
Ver. Não ver. Ser bom. Ser mau. Assim vamos andando na ambivalência das coisas nas caminhadas da vida. Saber ver! Saber não ver! Ou saber ver bem. Eis a questão!
Ver é bom, quem não o dirá? Mas ver nem sempre é bom. Morreríamos de susto se pudéssemos ver a bicharada minúscula que nos envolve, que se aloja na nossa pele, nos recantos das nossas casas, nas cadeiras em que nos sentamos, nas camas em que dormimos e sonhamos. E quem nunca sentiu a necessidade de fechar os olhos perante o horror de um espectáculo, real ou ficcionado? Afinal não ver pode ser bom! Mas, importa ver! Ver bem!
Olhar, observar e ver dependem dos nossos gestos e posições existenciais. Importa afinar o olhar para o nosso minúsculo Planeta a dançar num universo mais do que infinitamente grande. É a nossa Casa, mais do que infinitamente pequena. Está doente. E nós doentes com ela. As albufeiras vazias são as feridas visíveis. Agora que as eleições já vão sendo do passado, há que regressar à realidade necessária. Quando os olhos do rosto se fecham às lágrimas da Terra, importa afinar os olhos do espírito. Para podermos ter a ousadia de ver. E a virtude para agir.
Guarda, 16 de Fevereiro de 2022