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Abandonei a sacola e fui pela Croácia

Já aqui tenho iniciado textos com encontros casuais de rua. Lembro-me daquela ocasião em que fui interceptado por um colega de Liceu que, tocando-me no ombro, me saudou com este estranho pedido: «Um bilhete para Vila Fernando». Havia-lhe chamado a atenção aquela minha figura de Verão com uma sacola a tiracolo que lhe fez lembrar os antigos cobradores de bilhetes nas «carreiras» da região.
É verdade que não aprecio sobremaneira aquele adereço pendurado nos meus ombros. Confesso até que lhe resisti bastante tempo. Mas reconheço hoje que dá muito jeito quando escasseiam os bolsos na roupa de Verão para albergar outros adereços que fazem parte do presente viver. É a conhecida conjugação, nem sempre conseguida, entre os critérios de funcionalidade e os critérios estéticos. Pelo que me diz respeito, aqui, como em situações semelhantes, vou dando prioridade à questão funcional em desfavor da estética. E assim comecei a usar, no tempo quente, aquela sacola que se assemelhava à de um cobrador de bilhetes de viagem. Já se está a ver. Com a aproximação do tempo mais frio recuperei roupa mais quente e com mais bolsos. Abandonei, pois, a sacola até ao próximo Verão.
Há tempos, num desses dias de fim de Dezembro, cruzei-me com um amigo, sempre brincalhão nos cumprimentos. A sua mão direita foi direitinha à minha gravata. Tocando-a suavemente, sai-se com esta saudação:
– Linda gravata, a condizer bem com a camisa!
Cortesia exagerada do amigo, dada a vulgaridade da gravata, que até já tem uns anitos. Ou então, hipótese bem mais provável, simples ocasião de encetarmos alguma conversa. Naturalmente, tive que lhe retribuir do mesmo modo.
– Diz isso para que eu lhe gabe o cachecol e…
Fui logo interrompido, mal ele me viu a apontar para o seu original chapéu!
– Chapéus há muitos, cabeças é que nem tanto!
– E tem toda a razão. Anda por aí muita falta de cabecinha! – Comentei.
E, brincalhando, o diálogo continuou por momentos até aos habituais votos de «Festas Felizes».
Diz-se que «o tempo nunca está frio; a roupa é que não é adequada.» Por isso regressei à gravata. Já tenho ouvido dizer que é a peça de roupa mais supérflua do vestuário masculino. Sê-lo-á algumas vezes e em várias circunstâncias. Mas, no Inverno, é de grande funcionalidade no aquecimento do pescoço. Por isso, veio o frio, regressei à gravata.
No Egipto foram encontradas múmias com amuletos ao pescoço, conhecidos como «Nó de Isis» e que serviriam para proteger os mortos dos perigos do Além. Na China os guerreiros de elite do Imperador Shih Huang Ti (Século III a.C.) usavam, como símbolo do “status”, um cachecol com um nó. Finalmente lembremos que os oradores romanos usavam frequentemente o mesmo adereço no pescoço para manterem a garganta aquecida.
Parece claro que estes costumes antigos pouco ou nada têm a ver com a gravata que nós conhecemos para cuja história temos de ir à Croácia.
Foram os croatas ao serviço de Luís XIV que introduziram em França o uso da gravata. Foi durante a Guerra do Trinta Anos (1618-1648). O uniforme dos soldados croatas chegados a Paris integrava xailes pitorescos envolvendo o pescoço de modo peculiar. Os parisienses, entusiasmados com este estilo croata de vestir, adoptaram este objecto usado «à la manière croate», isto é, à maneira croata, e assim, «cravate», com origem em «croat», ou «gravata» à maneira portuguesa.
A gravata fez moda e depressa entrou no mundo burguês como símbolo de cultura e elegância, espalhando-se rapidamente por toda a Europa, e, posteriormente, por todo o mundo. Aquele pequeno lenço comprido a rodear o pescoço traduzia um costume croata antigo: era símbolo de amor e fidelidade, usado pelos cavalheiros ausentes em épocas de maior separação, como era o caso dos soldados croatas chegados a Paris.
Num estojo, onde vinha embalada uma gravata adquirida na Croácia, vim encontrar um marcador com esta pergunta formulada em inglês, francês, italiano, alemão e espanhol: «Sabia que gravata tem origem em croata?» E seguia-se um pequeno texto com as suas origens. Nele me inspirei para a redacção destas linhas.
Símbolo de amor e fidelidade na Croácia, sinal de cultura e elegância em Paris e na Europa, passou a ser depois expressão de dignidade na generalidade do mundo civilizado, associada tanto à dignidade das diversas instituições como à de actos sociais diversos. Ou então, como é muitas vezes o meu caso nos dias frios de Inverno, a gravata poderá possuir simples valor de protecção contra o frio, mesmo sem sermos oradores romanos.
A gravata caiu hoje bastante em desuso. Não sei se foi por se ter perdido o sentido do amor e da fidelidade, se por abastardamento da cultura e da elegância antiga ou por andar envergonhada a dignidade humana que impregnava de dignidade os espaços institucionais e os actos sociais da humana comunidade.
Bem sei que aquilo a que poderemos chamar dignidade ética ou social pode variar com os tempos vividos, mas não sei se não será falta de respeito pela dignidade profunda o desafogo exibicionista e empoleirado com que representantes do povo se apresentam desengravatados em espaços e actos solenes e de profundo significado nacional. Tal espectáculo já me tem criado um nó, não de gravata, mas na garganta!
Guarda, 1 de Janeiro de 2019.

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