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A RELAÇÃO MÉDICO-DOENTE

Histórias que a Vida Conta

O trágico balanço da epidemia do ébola à escala transcontinental e o surto de Legionella que aflige o nosso país colocaram o mundo da medicina e, muito especialmente, o universo hospitalar na mira dos holofotes da opinião pública e do ansioso escrutínio das populações.
Pareceu-me por isso oportuno abordar nesta crónica, ainda que nos seus termos gerais, o dever de informação médica e a consequente comunicação entre o médico e o doente.
Em causa está, no essencial, a compatibilização, por parte do médico, do dever de esclarecimento sobre o diagnóstico, a terapêutica e o prognóstico do doente, com a obrigação ética de o fazer com prudência e sensibilidade, sem criar traumatismos psicológicos desnecessários e alarmes vãos.
 No cumprimento do seu dever de esclarecimento da verdade da situação clínica ao doente, o médico deve utilizar as palavras adequadas, em termos compreensíveis, adaptados a cada paciente, distinguindo o que é importante do que, sendo menos relevante, é, todavia, motivo de preocupação para o doente. O esclarecimento deve ter em atenção o estado emocional deste, a sua capacidade de compreensão e o seu nível cultural, dando-lhe uma visão tão clara quanto possível da sua situação clínica, habilitando-o a optar por uma decisão consciente. A revelação exige delicadeza e respeito humano pelo sofrimento do paciente, devendo ser respeitado o ritmo requerido pelas particularidades do doente e da gravidade da patologia em presença, ponderados, pois, os eventuais danos que o esclarecimento lhe poderá causar. Trata-se de princípios consagrados no Código Deontológico do Médico (CDM), o qual, salienta, aliás, que “a revelação não deve ser imposta ao doente, pelo que não deve ser feita se este não a desejar”, acrescentando que “o diagnóstico e o prognóstico só podem ser dados a conhecer a terceiros, nomeadamente familiares, com o consentimento expresso do doente, a menos que este seja menor ou cognitivamente incompetente…”.
E aqui, duas palavras prévias a respeito do acompanhamento dos pacientes em fase terminal ou que sofrem de uma enfermidade incurável. Nesse domínio tão sensível deve seguir-se o princípio geral, vertido no artigo 31º do CDM nos seguintes termos: “O médico que aceite o encargo ou que tenha o dever de atender um doente obriga-se à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo sempre com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir a saúde e conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano”. .
A segunda observação preambular dedico-a às “doenças da velhice”. Foi-me ela suscitada pela morte tranquila da minha Tia Mimi, que pôs em evidência a importância do acompanhamento amigo por parte do médico, feito também com o coração. Todos aceitamos que a partida de uma pessoa de tão avançada idade seja recebida com a naturalidade das coisas esperadas, representando o termo de uma caminhada de muitos anos neste mundo. Ficou-nos, porém, além da saudade, a consolação de a termos sabido acompanhada com desvelo e carinho por um sobrinho médico, no caso, o meu irmão Jorge, a quem presto, por isso, a homenagem e o preito de gratidão que todos os restantes familiares lhe ficaram a dever.
Mas voltemos ao tema nuclear desta minha crónica.
Foi um velho amigo dos tempos da Marinha e do Comando Naval de Angola, hoje, um cientista de muito prestígio quer no País, quer a nível internacional, que me sugeriu a sua abordagem, tendo em atenção “a possível ilação de relevante interesse didáctico (para médicos e pacientes) que dela se poderia, eventualmente, tirar”. Pela sua clareza, atrevo-me a transcrever um trecho da missiva que esse meu amigo teve a amabilidade de me enviar:
“Ao ler as tuas crónicas, lembro-me naturalmente de muitas coisas a elas ligadas e vem-me sempre à memória uma situação que ambos vivemos em Luanda. Lembras-te certamente do assustador surto de casos de leucemia que aconteceram a camaradas da Marinha no Zaire nos finais de 1967. Como bem sabes, um dos sinais precursores da terrível enfermidade era o sangrar das gengivas. Ora, acontece que, em determinada altura, eu notava, de manhã, haver manchas de sangue na almofada e fiquei assustadíssimo. Fui ao médico da Base Naval e assim que lhe falei de sangue nas gengivas ele de imediato deu um salto na cadeira! Eu, obviamente, fiquei logo apavorado e a pensar no pior. Acontece que dois dias depois ia embarcar para patrulha Sul e aí foi o pesadelo total durante aqueles que foram os mais longos 15 dias da minha vida, dado que só então iria conhecer os resultados do hemograma, entretanto pedido para ser feito ainda antes do embarque. Nesse período, só pensava, a todo o momento, na família, nos amigos e na vida que iria certamente perder. Pois bem, chegado a Luanda, tomei conhecimento que os resultados eram normais!… Eu lembro-me de te ter contado o caso. E tu, com alívio, me disseste que tinhas passado também maus bocados por causa de algum sangue na almofada… Confesso que sempre que se torna oportuno, tenho o cuidado de contar esta minha triste história a médicos, conhecidos ou amigos, para os alertar para a necessidade de não exteriorizarem emoções (em especial as negativas) para os doentes por mais fortes que sejam os motivos. O pobre do médico, seguramente com toda a boa intenção, ainda estava sob o trauma do surto e não se conteve dando origem, desnecessariamente, ao traumatizante pesadelo. Afinal tratava-se de uma vulgar e simples gengivite”.
Recordo bem este episódio narrado pelo meu amigo e antigo camarada. É bem esclarecedor do dilema que, por certo, se coloca aos médicos. Penso que o bom caminho consistirá em cumprir o dever de facultar a informação relevante, de forma compreensível e em termos acessíveis, fazendo-o, porém, com sensibilidade, delicadeza, respeito humano e sem criar alarmismo, o que proporcionará ao doente a possibilidade de prestar um consentimento esclarecido e livre para a prática dos necessários actos médicos, hoje cada vez mais numerosos e sofisticados, evitando-lhe, contudo, traumas psicológicos de difícil superação.
E temos de ter em conta que, nos tempos que correm, o nível de conhecimentos da nossa população aumentou substancialmente e as exigências feitas ao atendimento médico são mais informadas e pressionantes. Alguém me dizia a propósito: “Doentes parece que já não há e pacientes então já ninguém sabe o que é… Hoje só há clientes quando não se diz apenas utentes”. Por outro lado o médico, incentivado por todos os meios a utilizar as novas tecnologias, aparece demasiadas vezes como um burocrata ou um fiscal acantonado atrás do ecrã dum computador, obcecado pelo teclado no afã de armazenar informação.
É certo que o “João Semana” não passa de um personagem de romance. Mas se a Doença e o Socorro não têm rosto, o doente e o médico têm um. Para se olharem, para se falarem e se ouvirem, para se entenderem.
Porque, frente a frente, mas solidários, ambos se ligam no amor à Vida.

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