Para mim o mais importante na vida são as palavras. Os humanos distinguem-se dos outros animais pelo uso da palavra.
É por isso que escrevo. E escrevo para não me esquecer das palavras, pois a maior angústia de todos nós é a de um dia perder completamente o seu uso. Impressionou-me saber que o grande escritor latino-americano, Gabriel Garcia Marques, depois de ter escrito, pronunciado e inventado tantas palavras com as suas magníficas histórias, tenha perdido a memória das palavras.
Vale a pena visitar uma das quaisquer casas de repouso para constatar a quantidade de pessoas, velhas e menos velhas, que perderam o uso da palavra. Perderam a memória das palavras.
O grande filósofo francês Michel Serres afirmou que o homem moderno perdeu a memória. As técnicas introduzidas pelas novas tecnologias impediram-nos do utilizar a memória. E constata que a Ilíada e a Odisseia atribuídas a Homero foram poemas transmitidos oralmente durante séculos, só transpostos em escrita no século VII antes da nossa era. Os escritos mais antigos da bíblia passaram de boca em boca através de gerações até terem sido consignados em livros. Alguns judeus prisioneiros da segunda guerra mundial conheciam o antigo testamento de cor. Muitos de nós podíamos recitar estrofes dos Lusíadas sem livro, assim como os sonetos de Antero de Quintal, poemas do Fernando Pessoa e a balada da nesse de Augusto Gil.
Hoje, com os Smartphones, degradamos a nossa memória. Confiamos demasiado nesta tecnologia, não fazemos esforço porque sabemos que a Google, Bing e outras multinacionais guardaram as palavras do mundo inteiro e agora podemos economizar a nossa memória, continuando eles a fazer fortunas porque lhe damos a economia das nossas palavras e porque é nos potentes processadores que se encontra a nossa memória.
E são as palavras que nos dão as emoções. Um doente que tenha perdido a memória, perdeu também as emoções. É reduzido a coisa. E aqueles que detêm ainda o uso da palavra ficam mudos perante tamanha degradação humana porque a comunicação acabou.
Ando a ler um livro da bielorrussa que ganhou o último prémio Nobel da literatura – “O Fim do Homem Vermelho”, de Svetlana Alexievitch. Esta escritora não foi galardoada pela originalidade da sua ficção, mas por ter utilizado o gravador e a sua pena, e nos ter transmitido a memória viva da grande tragédia que foi a União Soviética. Foi através do seu trabalho de ouvidora atenta que nos pôde dar à luz e transmitir as palavras e o universo misterioso daquele período que pretendia transformar o velho homem, o “velho Adão”, num homem novo, o “Homo Sovieticus”.
Ela interpela-nos pela sua curiosidade, pela sua procura das palavras e constata que nem todas são iguais. Há uma grande variedade de palavras: aquela através da qual falamos às crianças, com a que falamos de amor. Existe ainda a linguagem com que falamos a nós próprios e auscultamos a nossa consciência. Na rua, no trabalho, em viagem no mar, no ar, na floresta, na cidade… não ouvimos as mesmas palavras. Também as palavras que saem da nossa boca não são iguais de manhã e à noite, nem na cozinha, no salão, na cama ou com os amigos.
Svetlana Alexievitch, de gravador na mão andou à procura das palavras para descrever a enciclopédia da grande utopia que foi o comunismo, mas constata que as palavras que se encontram mais próximas da alma humana são aquelas que são pronunciadas nos dois grandes momentos da nossa existência: quando amamos e quando morremos.