Tem sido tema constante nas nossas televisões nestes últimos dias, a propósito do início do ano letivo para ruidosa camada dos nossos jovens universitários,
o “estatuto”, social, económico e financeiro dos seus membros, com incidência especial nas exigências do justo acesso e construção das respetivas carreiras. Domicílio, propinas, transportes, livros e demais material de estudo… e, enfaticamente exigidas, garantias de futuro: justa qualificação, profissionalização e emprego. Têm toda a razão os nossos jovens: o Futuro são eles, nós já tivemos o nosso, hoje só temos a saudade dele.
Ora daí a lembrar o meu tempo de jovem encartado foi um fósforo. Estudei Direito (1959 – 64) e, já Magistrado,… fui para a guerra! Era o futuro que, à época, nós, os “varões assinalados”, tínhamos por seguro e certo. E fui “servir” na Marinha, Reserva Naval, teatro de guerra em Luanda. Em vossa intenção, peguei (mais uma vez…) n”O Anuário da Reserva Naval [1958-1975]”, (de A. B. Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado) de cuja Introdução “A ABRIR”, retiro, a título de mais profundo esclarecimento, o seguinte:
“Até 1975, as missões da Marinha estendiam-se por um vasto espaço geográfico e o País confrontava-se com uma situação de guerra nos seus territórios ultramarinos da Guiné, Angola e Moçambique e de especial vigilância em Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe. Por isso (….) mantinha uma ativa participação das operações militares, designadamente nas suas componentes operacionais e logísticas, já que os referidos territórios tinham uma importante e extensa fronteira marítima.
“A carência de Oficiais aumentava substancialmente e foi na Reserva Naval que a Marinha encontrou a solução que melhor se adequou às necessidades específicas em pessoal qualificado. Os Oficiais da Reserva naval ombrearam então com os do Quadro Permanente no desempenho de cargos e missões da mais alta responsabilidade militar, na maioria das vezes em situações desconfortáveis, complexas e de elevado risco”.
Em 3 de setembro de 1966, iniciou-se o 9º CFORN – Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval -, vindo a concluir-se em 15 de março de 1967, com a promoção de 67 cadetes ao posto de Aspirante.
O curso integrava as classes de Marinha (naturalmente, a mais numerosa, com 26 cadetes), de Engenheiros Construtores Navais (com um só cadete), de Médicos Navais (quatro elementos), de Engenheiros Maquinistas Navais (com cinco unidades), de Administração Naval (com nove cadetes, onde eu fui integrado), de Fuzileiros (com dezasseis cadetes) e de Técnicos Especialistas (com oito elementos).
No termo dos quase quatro meses de recruta fizemos uma viagem de fim de curso. Distribuídos por duas fragatas – a “Corte Real”, comandada pelo então comandante Pinheiro de Azevedo, que, em 25 de abril, viria a ser figura destacada da Junta de Salvação Nacional e a “Diogo Cão”, sob o comando do comandante Serradas Duarte, visitámos as ilhas de São Miguel e do Faial, nos Açores, navegámos para Cabo Verde, onde desembarcámos e fomos fidalgamente recebidos em casas de família na ilha de Santiago, tendo navegado também até São Vicente e, por fim, no regresso a Lisboa, atracámos na Madeira. De tudo, além da miríade de fotos para mostrar à família e para mais tarde (cá estamos!) recordar, trouxemos agarradas à pele, uma dádiva e uma deriva: um lugar no mundo dos fazedores de destinos e uma noção clara e inequívoca do que é servir e com-viver. Seguiu-se a mobilização para os destinos ultramarinos, tendo os aspirantes escolhidos saído de Lisboa para assumirem as suas respetivas missões de comando, de imediatos ou oficiais de guarnição, de engenheiros maquinistas navais, fuzileiros navais. Houve também os que permaneceram na Metrópole, por exemplo, em tarefas administrativas ou de ensino. Chegámos a África como Sub-Tenentes e, passado um ano, fomos promovidos a 2ºs Tenentes.
Eu embarquei com a convicção de que, mais tarde ou mais cedo, iria ser colocado em Santo António do Zaire (Sazaire), para substituir um Colega do quadro permanente, que lá se encontrava colocado. Alguns meses depois de ter começado a trabalhar nas Instalações Navais da Ilha do Cabo (INIC), em Luanda, como responsável pela Secção de Receção e Expedição de Materiais, fui informado pelo Comandante do Serviço de Abastecimento que, por conveniência de serviço, eu continuaria na Base Naval de Luanda (Uau!). Foi assim que, nos dois anos da minha comissão de serviço, vivi na messe da Base Naval, convivendo assiduamente não apenas com os camaradas do meu curso, colocados no Comando Naval de Angola, como com os do quadro permanente.
Nos momentos livres, essa “convivência” alimentava-se do bacalhau do “Vilela”, mariscadas pelas múltiplas tendinhas onde eram servidas em boas condições de qualidade e preço, de assaltos ao Baleizão para comer umas inesquecíveis sandes de presunto, regadas a cerveja Cuca ou Nocal (havia quem pedisse uma “Cuca-Nocal”, como se se tratasse da mesma marca…). Numas idas ao Cacuaco ou, aproveitando o iate do Almirante, disponibilizado por interposta amizade, deslocávamo-nos à paradisíaca Ilha do Mussulo. Outras vezes íamos no meu carro até à foz do Quanza ou à barragem de Cambambe. De uma vez, em trio que a vida fez o favor de manter vivo – com o Francisco Rocha Pires (brilhante cirurgião na vida prática) e o Vítor Coelho da Silva –, aventurei-me até Nova Lisboa, o que, no percurso, nos permitiu conhecer o colonato de Cela, com vacas pastando em viçosos lameiros, gozando duma temperatura de planalto, que nos permitiu esquecer por um pouco as agruras da capital.
Fomos jovens sim! E – passe a imodéstia! – fomos jovens e deixámos pegada, nesse tempo e pela vida fora. Com uma juventude tão rica que ainda há dias a sentimos quando festejámos os 80 anos do nosso camarada Caliço, o José Manuel Rodrigues Caliço, o Comandante da LFP Vénus, um dos meus mais estimados amigos de Angola. Ora vejam se não merece?: algarvio, é alguém que alia o bom senso e a coragem a uma notável capacidade de liderança, a um humanismo e a uma autenticidade raros. Agrónomo, foi excelente jogador de rugby por Agronomia e, na Marinha, era estimado e respeitado, não apenas por todos nós, mas também pela guarnição que comandava. Fazia o pleno, sem reservas nem hesitações. Não era/não é bisonho ou sentencioso, antes dotado de uma gargalhada fácil e sonora. Íntegro e criterioso impôs-se como comandante da sua lancha e cultivou até hoje uma profunda ligação ao rugby da sua paixão. E, talvez por isso, está com um físico musculoso, ginasticado e ágil de fazer inveja aos jovens de hoje, e o rosto, vincado de rugas afáveis, continua a impor, jovialmente, toda a familiar admiração que as sólidas amizades contêm. É por certo um dos melhores de todos nós.
Éramos mais de sessenta na festa-surpresa! Entre amigos de Agronomia, companheiros da Marinha, colegas de trabalho, familiares do Algarve e do Porto, onde hoje vive este Homem do Sul e do Mar. E, meus amigos, acreditem ou não, por umas poucas de horas mágicas, senti-me rapaz outra vez!
Lisboa, 8 de setembro de 2023