Pontos de Vista
A NAVE DOS LOUCOS E O BRASIL
De repente, veio-me ao espírito “A Nave dos Loucos” (Ship of Fools), um filme que, em 1965, foi nomeado para oito Óscares da Academia, entre os quais o de “melhor filme”, “melhor actor”, “melhor actriz” e “melhor argumento adaptado”. Baseado no best seller de Katherine Anne Porter, a história decorre em 1933 a bordo de um paquete de luxo que faz a ligação entre o México e a Alemanha. Interpretado por um grupo de actores consagrados, entre os quais se destacavam os nomes de Vivien Leigh, a inesquecível intérprete de Scarlet O´Hara, de “E Tudo o Vento Levou”, Simone Signoret, Lee Marvin, Oskar Werner e Jose Ferrer, este na personagem de um potencial nazi cuja brutalidade já prenunciava os horrores do holocausto que estava para vir. As suas diferentes mas interligadas histórias servem como pano de fundo de um microcosmos anunciador de um mundo à beira da guerra.
A alegoria da Nave dos Loucos, tema pleno de simbolismo, tratado, entre outros, por Jerónimo Bosch (A nave dos loucos, c. de 1500), Ludovico Ariosto (Orlando furioso, século XVI), Erasmo de Roterdão (Elogio da loucura, século XVI), Honoré de Balzac (As ilusões perdidas, século XIX) e Artur Rimbaud (O barco ébrio, século XIX), inscreve-se, com laivos de ironia e de sátira, na crítica à sociedade mercantil e consumista, norteada pela ganância e orientada para o lucro fácil, tendo, como se viu, inspirado muitos criadores. Vícios, desde a gula à luxúria, sem esquecer a insensibilidade social, a corrupção e a violência, até à deslealdade e à traição, são muitos dos “pecados” dos timoneiros da “barca”, que se deixaram inebriar pelos encantos e facilidades do poder e do mando. Numa perspectiva mais filosófica, a nave à deriva simboliza a transitoriedade da vida terrena bem como a mente errática do género humano. Deste modo, os “loucos” que tripulam a nave (que tanto podem ser personalidades fúteis, como rufias ou foliões, pessoas belas e jovens ou figuras infelizes, deprimidas ou desesperadas) encenam e representam as situações características da Vida, passíveis de serem criticadas e caricaturadas. Ou seja, a alegoria da “nave dos loucos” proporciona uma observação impiedosa que incide sobre os instintos e as pulsões humanas que não são temperados pela razão.
As habituais panaceias sociais que servem de entretenimento e de escape às frustrações do dia-a-dia são algumas das razões que provocam a diminuição ou ausência de racionalidade e o consequente ingresso na simbologia tratada no tema da “nave dos loucos”.
É aqui que tem lugar o papel anestesiante do futebol, que, qual ópio do povo, pode ser associado, na alegoria, ao aparecimento da “ilha”, na linha do horizonte da “nave”, que reforça a ideia da busca irracional da completa felicidade e de um mundo diferente e utópico.
Não é difícil entender as razões que me trouxeram à memória a alegoria da “nave dos loucos”, plasmada, com brilho, no cinema, através do filme realizado por Stanley Kramer. Vivemos, na verdade, tempos irracionais, a roçar a imbecilidade. Como escreve, ainda hoje, dia 9 de Junho, Rui Tavares, “está virada do avesso a política portuguesa”. “Para uma parte dos partidos que reclamam eleições antecipadas, nada interessa menos do que eleições antecipadas agora. Sendo assim, vão continuando a pedi-las, mas cruzando os dedos para que o desejo não se realize”. O Partido Socialista, apesar de ter vencido as eleições europeias, foi abalado por uma guerra fratricida, causadora de enormes brechas internas, prenunciadoras de uma crise longa e, quiçá, devastadora. O ainda secretário-geral do PS propôs à Comissão Política Nacional – e esta aprovou – a data de 28 de Setembro para a realização das eleições primárias destinadas a escolher o candidato a Primeiro-Ministro com a intervenção de todos os militantes e simpatizantes socialistas. Até lá, apesar da sua fragilidade crescente, continuará a exigir ao PR a antecipação da data das “legislativas”. Entretanto, a crise interna precipitou, nas sondagens, um grande trambolhão do principal partido da oposição. Por sua vez, o Primeiro-Ministro dirige um ataque intolerável ao Tribunal Constitucional (TC) e aos seus Juízes, fazendo tábua rasa do princípio da separação de poderes. Por seu lado, o TC produz um acórdão com trechos praticamente ininteligíveis. O Presidente da República continua, como lhe é próprio, estático e silente, reservando o seu verbo para as grandes efemérides nacionais. Entretanto, o BES Angola (BESA) “perdeu o rasto a 5,7 mil milhões de dólares”. O BESA, de onde terão sido feitos levantamentos em numerário, superiores a 500 milhões de dólares, “está numa situação tão má que foi necessário o Estado angolano prestar uma garantia soberana sobre estes créditos. E, como escreve Pedro Santos Guerreiro, “mais do que sucessão, o BES (nacional) precisa de regeneração. O poder chegou a ser maior do que nunca. Mas não foi para sempre. A ganância, é sempre a ganância…”.
Não são todos estes sinais – e muitos, muitos mais que poderíamos aqui alinhar – denunciadores de uma nave à deriva?
Mas haja esperança, que vem aí o Mundial do Brasil…!
“Nestes tempos preocupados que vivemos, neste país pequenino e deprimido, a aproximação ao Mundial (…) funciona, segundo alguns, como uma vitamina de ânimo, fortificante e estimuladora, um suplemento de energia e vitalidade. Para outros, porém, mais não é do que uma substância entorpecente, um produto analgésico que nos distrai das tristezas do dia-a-dia. O futebol, ópio do povo, factor de colectiva alienação? Ou, pelo contrário, alavanca do orgulho pátrio, agregador de vontades dispersas na busca de um objectivo nacional?”
Embora estas palavras pudessem ser escritas agora, em vésperas do Campeonato do Mundo do Brasil, a verdade é que datam de há quatro anos, tendo-as eu publicado nas páginas deste Jornal a propósito do Campeonato Mundial da África do Sul. Provam que a crise já vem pelo menos desde aquela data mas, desde então, os nossos problemas não têm parado de se agravar. A “nave” do nosso (des)governo, bem como as aflições a amarguras que transporta, vai fazer uma escala no Brasil. Paragem que poderá ser mais ou menos longa e retemperadora, consoante a prestação futebolística da selecção portuguesa. Todos desejamos vitórias e alegrias desportivas. Mas, pelo meu lado, confesso que não estou tão optimista como há quatro anos. É que, para além de ser muito improvável que possamos contar com um Cristiano Ronaldo ao seu melhor nível, a verdade é que a generalidade da equipa está quatro anos mais velha.
Infelizmente, o meu palpite é que a escala da “nave” não vai ser muito longa e, ainda que o povo, de tão sacrificado, merecesse um reabastecimento de energias, através das alegrias proporcionadas por êxitos futebolísticos, temo que venha a acordar em finais de Junho, desiludido e triste, ao mesmo tempo que se aperceberá de que a “nave” continua descomandada e à deriva, sem rumo e sem norte.
Oxalá me engane!