A Montanha Russa

No meu último artigo saí em defesa do bom nome e da probidade parcimoniosa do Presidente da República, enxotando as insinuações e os enxovalhos com que o quiseram atingir a propósito do episódio das gémeas luso-brasileiras.

Todavia, ele pouco faz para ser ajudado; a sua “juvenil” inconstância leva-nos, numa semana a defendê-lo, mas, logo na outra, perante a sua conduta errática e ziguezagueante, os ventos mudam e a nossa vontade volta a ser no sentido de o censurar e zurzir. Ou seja, semana sim, semana não, apetece elogiá-lo, para, logo após, o criticar.
O Professor Marcelo tem comportamentos bipolares relativamente a certas matérias e quanto a alguns protagonistas. Na última semana, deu-lhe para, num acesso de carinho – ou de remorso -, elogiar o Primeiro-Ministro António Costa. Fê-lo para surpresa geral – e não só para os do seu hemisfério político – e com enorme falta de jeito, que eu chego a pôr em causa, por o considerar um político intelectualmente muito dotado e previsto mesmo nos seus devaneios aparentemente mais inesperados. O que é que aconteceu então?
Num primeiro momento, perguntado sobre qual o novo Secretário-Geral que preferia para o PS – se Pedro Nuno Santos, se José Luís Carneiro -, prontamente respondeu que não era nenhum deles. Explicando, afirmou convicto que a sua preferência ia, inteira, para António Costa, ou seja, para o anterior Secretário-Geral, que ele próprio tinha ajudado a apear, aceitando a sua demissão enquanto primeiro-ministro. Mas este foi o episódio menos grave e mais facilmente explicável: a sua dimensão era apenas interna e a preferência manifestada por alguém que tanto o tinha fustigado nos últimos tempos e que estava em aberta discordância com as opções presidenciais, estava de acordo com a personalidade de M.R.S. que, como afirmou o seu amigo José Miguel Júdice, precisa de que todos gostem dele. Se assim é com a população em geral, por maioria de razão assim será para com o único Primeiro-Ministro com quem trabalhou num clima “edénico” até que o “caldo se entornou”, após o caso Galamba. Só que o nosso afetivo e caloroso PR excedeu-se em elogios e em votos de concretização totalmente fora do seu alcance ou capacidade de intervenção. Como escreveu a articulista do “Público” Helena Pereira, “Marcelo Rebelo de Sousa parece ter-se tornado uma espécie de fã número 1 de António Costa”. Nesta semana quando foi ao Barreiro beber a tradicional ginjinha de Natal, fez ao ainda primeiro-ministro o seguinte elogio que nada tem de convencional: “Eu, por exemplo, desejaria que o primeiro-ministro estivesse em condições de ter um lugar na Europa, como presidente do Conselho Europeu”. Justificando este desejo, explicou que seria uma forma de Costa «realmente fazer o que faz bem, o que gosta de fazer e que lhe permitiu ter um prestígio grande em termos europeus ao longo destes oito anos em que já é talvez o primeiro-ministro mais antigo da Europa» cfr. “Publico” de 27 de dezembro, pág. 4.
Trata-se de um voto inesperado e anómalo. Poderia ser feito à mesa do café ou à ceia, no círculo restrito de um grupo de amigos (mas haverá verdadeiros amigos entre a alta classe política?). Mas, assim formulado, com toda a publicidade, faz-nos pensar que, das duas, uma: ou o Presidente criou uma fábula espirituosa para encandear os parvos (ou seja, nós, portugueses, que não o Costa, que deve ter traduzido adequadamente este dito de humor se é que não foi mais uma tirada sádica por parte de Marcelo…) ou, em alternativa, ficou cheio de remorsos por ter demitido Costa e quer fazer-se perdoar com a publicitação de um tal desejo, tão simpático quanto inócuo. Esqueceu agravos – e tinha vários – do primeiro-ministro e desejou-lhe um cargo lá bem longe, no coração das instituições europeias, onde, por certo, ele se sentiria bem. Haveria ainda uma terceira alternativa, em que eu não acredito, porque só daria mais confusão e faria ruído. Consistiria na entrada de Marcelo na campanha eleitoral, em campanha pelo PS.
Mas, seriamente, porque é que o voto manifestado pelo nosso extrovertido Presidente é assim tão estapafúrdio? Fundamentalmente, por estas duas razões simples e bastamente conhecidas: (a) o lugar em apreço só deverá ser preenchido depois de conhecidos os resultados das eleições europeias a realizar em junho próximo, ou seja, depois de conhecidas as relações de forças entre o Partido Popular Europeu e o Partido Socialista Europeu; (b) para o cargo de presidente do Conselho Europeu têm sido sempre escolhidos primeiros-ministros em exercício, o que deixou de ser o caso de António Costa, justamente demitido por MRS.
Outra conclusão me ocorre ainda. Segundo o que declarou no voto formulado para o futuro de Costa, o nosso Presidente, com a obsessiva pretensão de a todos agradar – mesmo aos seus adversários políticos mais declarados – parece ter decidido não só perdoar mas também estender o ramo de oliveira ao seu adversário, que, convenha-se, o tratou de forma indecente, mormente no caso “galamba”. Porque a verdade é esta: António Costa mereceu bem o destino que lhe coube: a demissão, ainda que a seu expresso pedido. Com a atmosfera envenenada que o cercava, o ar lá no alto do poder tornou-se irrespirável, e nem o chapéu-de-chuva que ele, em tempos áureos e já longínquos de paz e concordância, estendera ao PR a protegê-lo da chuva, nem por milagre o protegeria a ele de uma valente molha. E, mesmo assim retirado, veremos…
O ano que finda mais parece ter-se tornado num saco de gatos assanhados em que a politiquice se instalou e a política nobre se anulou. Alguns passos do artigo de Manuel Carvalho (no Público de hoje, pág. 9) dão, nesta perspetiva, um resumo atinado do que se foi passando: “Demissões, casos, casinhos foram tantos, a degradação do ensino público e do SNS chegaram tão longe que importantes registos nas contas do Estado acabaram apenas como uma prova de que, afinal, o Governo apenas respirava. Como se viu a 7 de novembro, estava já em fase terminal”; “O Governo caiu porque lhe faltava o empurrão final para acabar com a sua inexorável agonia de 2023”. E, mais adiante: “Se o Governo tivesse sido bom, seria absurdo retirar o PS da governação. Perante o que vivemos em 2023, não havia grandes alternativas.”
No ponto em que estamos, as alternativas que se desencantem não deixarão de ser preocupantes. O próximo desafio – as eleições – será, desta vez mais do que nunca, a prova maior de que, chegada a hora das decisões fundadoras, para lá do infortúnio ou do susto, o povo português é capaz de revelar a lucidez e a coragem de um povo adulto e firme.
Lisboa, 28 de dezembro de 2023

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