A minha última crónica

Escrevo nos últimos dias do Ano da Graça de 2017, precisamente quando os meios de comunicação social nos informam das tristes circunstâncias em que os partidos mudaram a lei do seu próprio financiamento.

E a polémica está com razão instalada. Bem poderemos confirmar que, como sempre ouvi dizer, o bom senso e a vergonha, quando se perdem, nunca mais se encontram. Eu, que ignoro de todo os sacos financeiros dos partidos, aguardo atentamente que o Presidente da República tenha a coragem de dignificar a democracia.
Regresso assim ao início da minha cronicazinha. Escrevo nos últimos dias do Ano da Graça de 2017, naqueles dias em que, por aqui e por ali, se faz balanço disto e daquilo, se emitem opiniões sobre «os acontecimentos do ano», as «personalidades do ano», «os livros do ano», «os filmes do ano» e de outras muitas e desvairadas coisas… «do ano». E sempre serão muitas e desvairadas tais opiniões. Eu não vou por aí. Até porque o ano parece ir terminar com mais um exemplo da miséria democrática que se vive lá para as bandas do palácio das nossas leis. Porque não irei por aí, não irei apontar as misérias dessas leis… Não sou legislador nem jurista, mas sou um cidadão que não pode deixar de protestar quando aqueles em quem votámos se escondem para aprovarem leis em benefício próprio, para saldarem o seu futuro e apagarem as dívidas do passado. Mais do que uma tristeza, é uma tristura!
Mas, já me ia esquecendo, não quero ir por aí. Volto, pois, atrás na minha cronicazinha. Até porque, escrevendo nos últimos dias do Ano da Graça de 2017, esta será a minha última crónica e não desejaria trazer a exame a contingência e efemeridade das coisas, mas a lembrança do permanente e que sempre está connosco. O tempo, por exemplo. É sempre o tempo que me ocorre quando o calendário nos diz que, estando em finais de Dezembro, vamos mudar um dígito à era com que marcamos a vida.
Surgem-me com frequência as palavras do estóico Séneca na primeira das suas Cartas a Lucílio: «Podes indicar-me alguém que dê o justo valor ao tempo, aproveite bem o seu dia e pense que diariamente morre um pouco? É um erro imaginar que a morte está à nossa frente. Grande parte dela já pertence ao passado, toda a nossa vida pretérita é já do domínio da morte!» Um pouco mais adiante, escreve o filósofo: «Nada nos pertence, Lucílio, só o tempo é mesmo nosso… É tão grande a insensatez dos homens que aceitam prestar contas de tudo quanto – mau grado o seu valor mínimo, ou nulo, e pelo menos certamente recuperável – lhes é emprestado, mas ninguém se julga na obrigação de justificar o tempo que recebeu, apesar de este ser o único bem que, por maior que seja a nossa gratidão, nunca podemos restituir.»
Só o tempo é mesmo nosso. O nosso tempo, porém, não é o tempo das coisas, nem o dos astros no seu movimento, o chronos, como diziam os gregos, embora seja por eles que construímos os relógios, mecânicos ou electrónicos, e medimos o tempo, o tempo das coisas. Outro é o nosso tempo. O nosso tempo é tempo humano, o tempo com que, pedra sobre pedra, vamos erguendo a construção da existência.
Andamos frequentemente tão atarefados a passar pelo tempo das coisas, com pressa e tão preocupados em não «perder tempo» porque «o tempo é dinheiro», que esquecemos o nosso tempo, o tempo humano, o tempo da vida, aquele «que, por maior que seja a nossa gratidão, nunca podemos restituir», como nos lembra o antigo filósofo. É o tempo que, embora o possamos contar pelos nossos cronómetros, está para além do chronos, do tempo contado. É o kairos, também dos gregos, o tempo maduro para as oportunidades de vida. É o tempo que também tem altura e que mede a profundidade do sentido no ser humano.
Que tempo é este com que findamos um ano e iniciamos outro?
Responder a uma pergunta assim, não é tanto encontrar «os acontecimentos do ano», as «personalidades do ano», «os livros do ano», «os filmes do ano» e de outras desvairadas coisas… «do ano», a que eu poderia acrescentar «a minha crónica do ano». Mas não vou por aí. Porque perguntar pelo tempo com que findamos um ano e iniciamos outro é obrigar-nos ao desafio de perguntar pelo nosso lugar no tempo que nos é dado e que, «por maior que seja a nossa gratidão, nunca podemos restituir», como nos lembra a carta de Séneca a Lucílio.
Estamos nos últimos dias do Ano da Graça de 2017 e esta é a minha última crónica. Importa viver o tempo: fazer parar o tempo das coisas que nos cegam para entrarmos no kairos, no tempo da centralidade do sentido da vida.
Estamos nos últimos dias do Ano da Graça de 2017. Tenha o leitor um 2018 promissor e permita-me uma humilde sugestão: não se deixe inebriar pelo tempo transitório das coisas que tantas vezes nos sufocam e viva em profundidade o tempo humano do ser e nele seja feliz. Como a rosa do Principezinho de Antoine de Saint-Exupéry: «Foi o tempo que perdi com a minha rosa que a fez tão importante.»
Guarda, 28 de Dezembro de 2017.

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