A memória das palavras
1. Vasco Graça Moura (1942 – 2014) – Para ele “a poesia é a minha forma verbal de estar no mundo.” Mas era, acima de tudo, um tradutor. Traduziu muito e sobretudo literatura do tempo do renascimento. “Poeta e tradutor de grandes poetas, romancista, ensaísta, dramaturgo, cronista, antologiador, historiador honoris causa, advogado, político, gestor cultural – e podiam acrescentar-se várias outras actividades –, Graça Moura foi um improvável espírito renascentista encarnado neste presente um pouco caótico de mais para o seu assumido gosto pela ordem e pela disciplina.” Mas não só. Traduziu do espanhol, do francês, do italiano, do inglês e do alemão. Mas a maior tradução está registada nos inúmeros livros que escreveu: aí traduziu o seu pensamento, a sua literatura. Muitos textos têm reminiscências das traduções realizadas. Mas a tradução dos seus pensamentos realizou-a com paixão e sem compaixão. As ideias políticas valeram-lhe alguns inimigos, mas isso não o perturbou. O caminho interiorizou-o integralmente. Escrita de lucidez e independência feita de perfeição quase atingível, mas também, nalguns poemas, geométrica.
Foi um poeta único. “Eu cá transformo tudo em literatura”, afirma-se num conhecido verso denunciador da poética alquímica, simultaneamente irónica e classicizante de Vasco Graça Moura. Essa tendência para a autodefinição transparece em alguns dos seus textos poéticos, mas também em escritos que ocasionalmente os acompanham, como acontece em “Poesia e autobiografia”, onde podemos ler: “Para mim essas coisas são naturais. Escrevo poemas quando uma certa disponibilidade, uma certa informação e uma certa tensão agudizam a minha percepção do mundo e me permitem operar, por via da palavra poética, uma manipulação dele” (Modo Mudando). Neste sentido de recriação artística, não escandaliza ninguém que o poeta afirme, longe de biografismo ingénuos, que toda a sua poesia é modulada por uma “dimensão autobiográfica”. Na sua refinada e aparentemente prosaica captação (re)criativa do efémero quotidiano, não esquece a moderna lição de O’Neill ou de Cesário, dois dos seus assumidos mestres. É justamente à luz da concepção simultaneamente lúdica e ética, orientadora do seu trabalho oficinal, que lemos com enorme prazer poemas como o lamento para a língua portuguesa ou os sentidos poemas com pessoas. (Cândido Martins, Letras & Letras).
Intransigente defensor da língua portuguesa, lutou persistentemente contra a aplicação do acordo ortográfico. A sua paixão pela nossa língua ficou registada no poema “lamento para a língua portuguesa” : “não és mais do que as outras, mas és nossa, / e crescemos em ti. nem se imagina / que alguma vez uma outra língua possa / pôr-te incolor, ou inodora, insossa, / ser remédio brutal, mera aspirina, / ou tirar-nos de vez de alguma fossa, / ou dar-nos vida nova e repentina. / mas é o teu país que te destroça, / o teu próprio país quer-te esquecer / e a sua condição te contamina / e no seu dia-a-dia te assassina. “Antologia dos Sessenta Anos”
2. Alberto da Costa e Silva – Prémio Camões 2014. Este ano o prémio foi para o Brasil. É um autor pouco conhecido entre nós – confesso que nunca li nada dele – e é poeta, memorialista, ensaísta e historiador especialista em África. É pois um autor a descobri,r uma vez que o prémio foi atribuído por unanimidade o que revela a sua importância. Numa primeira reação, Mia Couto, seu antecessor no galardão, disse que ao autor “fez o trabalho de resgatar a memória de África “com arte e elegância”. “É um poeta que está a escrever e o que se está a premiar aqui não é só o trabalho de alguém que caminha pela história e pela reconstituição do passado mas que faz isso com qualidade literária”. Alberto Costa e Silva, nasceu em São Paulo, em 1931, e foi embaixador do Brasil em Portugal. Um dos representantes de Portugal no júri, José Carlos de Vasconcelos, disse que o autor nos seus volumes de memórias tem uma parte substancial dedicada ao tempo que passou no nosso país sendo por isso um excelente testemunho sobre um período da história de Portugal. Acima de tudo é um historiador e esta faceta da sua obra é a mais conhecida. Dos anos de Lisboa deixamos o seu testemunho: “Três anos mais tarde, voltei a Lisboa, como embaixador. A cidade era outra. Não se podia mais estacionar um carro no Chiado, por exemplo, o que dantes se fazia facilmente. E os amigos estavam mais velhos. Alguns haviam morrido, como Botelho, e outros partiriam pouco depois de nosso retorno, como João Gaspar Simões e Alexandre O’Neill. Mudara Lisboa e mudáramos nós. Mas não se alterara o essencial: 20 anos depois, o ambiente de afeto era o mesmo. E ganhamos mais amigos.” (Autobiografia escrita em 2006 e publicado no Jornal de Letras).
Como aperitivo para uma leitura mais demorada fica um soneto da sua obra “As Linhas da Mão” que foi um livro premiado no Brasil:
Respiro e vejo. A noite e cada sol
vão rompendo de mim a todo o instante,
tarde e manhã que são tecido tempo,
chuva e colheita. O céu, repouso e vento.
Vergel de aves. Vou entre viveiros,
a caçar com o olhar, passarinhagem
dos pequeninos sóis e das estrelas
que emigram neste céu de goiabeiras.
mas sigo a jardinagem, podo o tempo,
o desgosto do espaço, a sombra e o fogo,
as florações da luz e da cegueira.
E, no dia, suspensa cachoeira,
neste jogo sagrado, vivo e vejo
o que veio em meus olhos desenhado.