Todas as Quintas Feiras, a cidade me oferecia o espectáculo da feira.
A festa começava na Quarta, quando via as mulheres, com carrinhos de mão, transportarem os paus que iam servir de base das tendas. Desde a manhã, até á noite, iam e vinham, iam e vinham, até que o Campo estivesse devidamente operacional. Como elas, sem o saberem, com estes indícios, me alegravam o coração!
Na Quinta-feira, logo muito cedo, a minha mãe me perguntava se eu queria ir à feira, apesar de bem saber que a resposta era afirmativa. E aí, ao sair da porta de casa, o encantamento começava.
Chegados ao Campo da Feira, começávamos por passar, se bem que não fosse por intenção, no sector dos artesãos da madeira, onde o olhar se ia fixando em muitos e variados objectos: cabos para ancinhos e sachos, provavelmente iguais, desde a Idade Média, aduelas para pipos e demais recipientes para as uvas, jugos para lançar sobre juntas de bois e até piões que, no recreio da escola, faziam chamas ao rodar no lajedo. Depois, e aqui por intenção deliberada, minha mãe seguia para o sector dos legumes, onde se abastecia das cenouras, do feijão-verde e demais mimos das hortas, das muitas freguesias que compunham o meu concelho. Seguiam-se as áleas da fruta, onde cabazes transbordavam de laranjas, mais no Inverno, de maçã, quase o ano inteiro, de cerejas, quando era o tempo do calor e os grilos iniciavam as suas noites de actuação no meu quintal. E nos carros de bois, melões de casca de carvalho, que começavam a aparecer em Julho e me deliciavam até Setembro.
Na alameda que deitava para a Igreja do Terço, igreja belíssima de estilo barroco, com suas monumentais paredes forradas a azulejos com cenas da Bíblia, a sua talha dourada, muito bem conservada, nesta alameda, assentava arraiais o homem da banha da cobra. A freguesia aguardava, paciente, a sua chegada, como doentes ordeiros à espera do doutor. Sabia-se quem eram os fregueses do costume, velhinhas que, lestas, iam retirando das suas sacolas embalagens vazias e que o vendedor rapidamente trocava por outras cheias, na proporção de duas por uma. E, despedidas estas, começava a história fantástica, duma cabrinha com duas cabeças, que prometia exibir dali a momentos, conforme grande caixote que, dizia, guardava na camioneta. Quando entendia ser suficiente o auditório, entrava então directamente no assunto, explicando que a pomada, milagrosa, como sugeria a tampa da embalagem, fazia desaparecer as dores de cabeça, da ciática e do lumbago, e que a grande vantagem estava no facto de ele ser um vendedor da fábrica, pelo que o preço seria um quarto do que pagariam na Farmácia Castilho no Porto, na Luciano e Matos em Coimbra ou na Farmácia Azevedo, em Lisboa. E este encanto só quebrava quando a minha mãe, puxando-me pela mão, me acordava para as horas, com a escola quase a abrir, e eu lá ia, apenas ressentido por não ter visto a cabrinha que, aliás, em boa verdade, nunca, ninguém havia visto.
Já no regresso, no cruzamento mais movimentado da cidade, estava-me reservada a última atracção. O Senhor Vilaça, agente da P.S.P. apagado durante toda a semana, envergava, às Quintas Feiras, o seu uniforme mais luzidio, colocava um capacete branco com uma estrela mesmo sobre a testa e, munido de luvas brancas, agigantava-se como sinaleiro a ordenar o trânsito caótico, onde camionetas e automóveis disputavam, com antiquíssimos carros de bois, e um enxame de bicicletas, a exiguidade dos arruamentos.
E foi num dia de Novembro, embevecido a contemplar a linguagem gestual do Vilaça, à luz dourada do Outono, que eu confessei à minha mãe que, quando fosse grande, o que eu queria mesmo era ser sinaleiro.