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A GUERRA NA FAIXA DE GAZA E AS NAÇÕES UNIDAS

1 – A contraofensiva israelita prossegue. Os bombardeamentos aéreos e, desde há meia dúzia de dias, as incursões terrestres em Gaza sucedem-se a um ritmo cada vem mais intenso.

É legítimo interrogarmo-nos se estamos perante uma resposta militar, uma retaliação, uma vingança, um massacre ou um genocídio. Entendamo-nos, porém: quem deu origem a esta operação, que está a reduzir a cinzas o sobrepovoado território de Gaza, foi o Hamas, com a sua horrenda e desumana ofensiva contra os Kibutz em território israelita, desencadeada no passado dia 7 de outubro, onde praticaram ferozes crimes contra civis desarmados, e constituíram cerca de duas centenas de reféns, entre os quais mulheres e crianças, muitas das quais se tinham deslocado a um festival de música perto da fronteira. Mas não podemos confundir um grupo terrorista, nem nos métodos de ataque – por muito que custe a alguns radicais anti-israelitas, uma coisa é a barbárie em estado puro do Hamas e outra são as mortes em campo de guerra cometidas por um Exército em armas -, nem nos propósitos de afirmação, com um Estado democrático, por muito arredio ao cumprimento das resoluções da Assembleia Geral da ONU que, sucessivamente, o vêm desautorizando e condenando. Coloca-se, assim, o problema de saber se Israel, na sua resposta militar, tem vindo a respeitar os limites humanitários do direito de defesa, que ninguém, de boa fé, lhe negou, ou se está a violar o princípio da proporcionalidade, bombardeando sem piedade a população palestiniana civil de Gaza, fazendo, até hoje, quase nove mil vítimas mortais, entre as quais milhares de crianças e muitas mulheres.
Ainda que não se possa esquecer o direito que o Estado de Israel tem de se defender, o que justifica os seus contra-ataques a Gaza, até para recuperação dos reféns, essa resposta não deve exceder os limites da proporcionalidade, que, no plano interno, bem como no externo, orienta os parâmetros da “licitude” da resposta, em função da adequação desta à agressão sofrida ou em execução.
Perguntamo-nos, porém, se é legítimo e conforme com o Direito Internacional da guerra, sitiar uma banda de terra com cerca de 40 quilómetros de comprimentos por 8 de largura, onde vivem mais de dois milhões de habitantes, sujeitos à “ordem” do Hamas, a quem servem de escudos humanos, privando-os agora de bens básicos – desde água, alimentos, energia e combustíveis, a medicamentos de toda a ordem – atacando objetivos aparentemente civis, reduzindo habitações a escombros, bombardeando campos de refugiados (como aconteceu no dia 31 de outubro em Jabalia). Já não digo o mesmo das deslocações da população civil de Gaza, de norte para sul, recomendadas pelas autoridades militares de Israel, uma vez que o objetivo óbvio de tais recomendações consistiu em evitar um número ainda maior de vítimas. Mas será tolerável e conforme com os princípios humanitários, a respeitar mesmo em terreno e em tempo de guerra aberta, rejeitar qualquer hipótese de cessar-fogo e não tolerar sequer a possibilidade de pausas humanitárias para permitir a passagem da ajuda humanitária a uma população tão fragilizada e carente?
2 – É neste contexto que tem de ser avaliada a intervenção do Secretário-Geral da ONU, António Guterres. Sem paixões nem patriotismos, reconhecendo a extrema complexidade do cargo e da situação subjacente e cumprindo o dever de apreciar Guterres como sabemos que ele é: um Homem bem formado, sério, inteligente e com um grande sentido humanitário, analisemos a sua intervenção e o seu posicionamento na matéria. No centro da polémica estão as afirmações de Guterres que passo a citar: “É importante reconhecer também que os ataques do Hamas não surgiram do vácuo. O povo palestiniano tem estado sujeito a 56 anos de ocupação sufocante. Viram as suas terras serem continuamente devoradas por colonatos e assolados pela violência (…”). É certo que António Guterres logo acrescentou: “Mas as queixas do povo palestiniano não podem justificar os terríveis ataques do Hamas e esses terríveis ataques não podem justificar a punição coletiva do povo palestiniano”.
Como salienta Francisco Mendes da Silva, num artigo intitulado “O que Guterres devia ter dito, querendo dizer o que diz que quis dizer”, in “Público” de 27 de outubro, pág. 8, “o primeiro problema da declaração (…) é que não tem uma lógica intrínseca aparente. Se Guterres diz que os ataques são injustificáveis, porque diz igualmente que eles “não surgiram do vácuo”? Se diz que os ataques não podem ser explicados com as “queixas de povo palestiniano”, porque diz que o contexto que os fez “surgir” (a ausência de vácuo é um contexto) são os “56 anos de ocupação sufocante”?
Vejamos: a análise do Secretário Geral das Nações Unidas parte do princípio de que a ação criminosa do Hamas não veio do vácuo. Pergunta-se então: mas será que o ataque de 7 de outubro teve justificação nos antecedentes de opressão do povo palestiniano? O próprio António Guterres responde que não. Se assim é, é indesculpável.
3 – A história de um povo está cheia de grandezas e de misérias. Corroborando este pensamento, António Barreto escreve que “nada permite que as glórias e os sofrimentos passados justifiquem e desculpem os crimes de hoje, as agressões, os massacres e as violações do direito internacional. O massacre de 7 de outubro não tem justificação nem desculpa. É um ato de pura agressão e de mortandade. Como tal tem de ser julgado. A responsabilidade não é de 100 anos de pobreza palestiniana nem de 50 de colonatos. É, sim, das escolhas e das decisões dos dirigentes do Hamas e dos seus aliados” – cfr. o artigo “No círculo do Inferno”, no “Público”, de 28 de outubro. É por isso que, para esta corrente de opinião, “se compreende a reação de Israel, que pretende justamente liquidar um movimento político que proclama a destruição de um Estado e de um povo”. Mas, pela mesma ordem de razões, não é aceitável que esse Estado ou os seus responsáveis utilizem meios condenados pelo direito internacional ou violem grave e sistematicamente direitos humanos, nomeadamente, de civis, praticando atos tipificáveis como crimes de genocídio, de guerra ou contra a humanidade, podendo por isso ficar sujeitos à jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) ou do Tribunal Penal Internacional (TPI). E a verdade é que, independentemente da menor felicidade de algumas palavras da sua mensagem, António Guterres esteve, do ponto de vista substancial, do lado certo das suas obrigações enquanto Secretário-Geral da ONU. Tomou sempre uma posição imparcial, bateu-se pela minimização das graves carências dos palestinianos, tendo presentes os seus deveres perante os princípios e a prática do Direito Internacional Humanitário; não se escondeu à sombra dos interesses dos mais poderosos, foi equidistante e corajoso. Respeitou o seu cargo e honrou a ONU, de que é a primeira figura, bem como as dezenas de vítimas mortais entre os funcionários da Organização que esta guerra já fez até hoje. Como ele disse, o catálogo dos direitos que merecem tutela por parte da ONU não é um menu “à la carte” para escolha dos que convêm e rejeição dos que não têm préstimo para quem escolhe.
Lisboa, 31 de outubro de 2023

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