Histórias que a Vida Conta
Tive-a por companheira desde o final da adolescência. No início do meu curso de Direito, encantou-me a novidade da caminhada que me propunha, os novos horizontes que ela abria, as viagens e as visitas de recreio, lazer ou cultura, as aventuras, em suma, que me proporcionava. Exigente, passei com ela muitos serões. Por sua causa, perdi horas de sono e de estudo, interrompi a leitura de bons livros, modifiquei projectos de trabalho e desviei a rota do meu dia-a-dia.
Acompanhei-a ao teatro, onde vi, com ela, peças clássicas e conheci Palmira Bastos, Amélia Rey Colaço, Mariana Rey Monteiro, as três grandes damas do “Dona Maria” e outras grandes figuras do mesmo palco, como Erico Braga, Jacinto Ramos, Luís Filipe, Raul de Carvalho, José de Castro, Varela Silva, Eunice Muñoz ou Lourdes Norberto. Maliciosa, incitou-me a frequentar o teatro de revista e a franquear as portas das salas do Parque Mayer. Ri com Eugénio Salvador, Humberto Madeira, Raul Solnado, Ivone Silva, Camilo de Oliveira, Laura Alves, José Viana… Frívola, mas ingénua, levou-me ao cinema, onde me deliciei com as nossas velhas fitas das décadas de 40 e 50 e me rendi ao talento de grandes actores como Vasco Santana, António Silva, Beatriz Costa, Ribeirinho e tantos outros. Mostrou-me o fado e admirei, além da grande Amália, outros fadistas famosos: Maria Teresa de Noronha, Hermínia, Alfredo Marceneiro, Carlos Ramos, Lucília do Carmo…
Não desprovida de interesses culturais, permitiu-me conhecer grandes figuras do nosso Portugal, cinzento e neurasténico: o linguista Padre Raul Machado, o grande comunicador Vitorino Nemésio, o ensaiador teatral António Pedro, o historiador José Hermano Saraiva, o filósofo Agostinho da Silva. Com ela acompanhei as reflexões de D. António Ribeiro, no “Amanhã é Domingo”. Tendo-a sempre como companhia, viajei até ao estrangeiro, conheci museus e obras de arte, acompanhei o Carnaval do Rio, contactei com novas culturas, conheci hábitos e costumes estranhos, vivi conflitos e sofri com as desventuras do mundo e com a guerra de África.
E, ainda bem antes de “Abril”, acompanhando a sua evolução, pude constatar a atracção crescente que suscitava junto dos poderosos. Sedutora, embora discreta, o seu fascínio aumentava à medida que o povo ia ganhando consciência dos seus direitos cívicos, da sua cidadania. Em certo momento, convenceu-me a ouvir as “Conversas em Família”, iniciativa do Chefe do Governo, Professor Marcello Caetano. Ao contrário de Salazar, que era homem de outro tempo, o seu sucessor não negligenciou as suas potencialidades de convencimento e sedução.
Neste ponto da narrativa, já todos descobriram a identidade da minha companheira. Chamava-se “Radio e Televisão de Portugal”, mais conhecida pelo petit nom de RTP. Ou, se quisermos alargar o contexto, a minha companheira era a TELEVISÃO.
Entretanto, em 1974, aconteceu o advento do regime democrático. A RTP, que viria a manter o monopólio da televisão em Portugal até 1992, tornou-se uma interveniente social cada vez mais solicitada, influente e temida. A actividade política passou a subordinar-se, nos tempos de muitas intervenções dos seus protagonistas, à agenda dos telejornais televisivos. Ficaram, na memória colectiva, momentos fundamentais dos primeiros tempos da Revolução. Quem não se lembra da chegada ao País de Mário Soares e de Álvaro Cunhal, assim como da cobertura do 1º de Maio de 1974? Ou, na noite de 25 de Novembro de 1975, da passagem da transmissão para os estúdios do Porto, cortando a palavra ao “capitão de Abril” Durand Clemente, para pôr no ar um filme de Danny Kaye? Bem como do comício, no Terreiro do Paço, onde, logo após o rebentamento de uns petardos, o Almirante Pinheiro de Azevedo apelou à tranquilidade da multidão, exclamando: “É só fumaça…; o povo é sereno”?
Por outro lado, a minha companheira/televisão vestiu-se de cores em 1980. Tornou-se mais garrida, mais vaidosa, abandonando o figurino discreto do branco e preto. As mulheres tornaram-se mais exigentes no vestuário e os homens na escolha das gravatas, seguros de que, quantas vezes, os espectadores, atentavam mais na apresentação do que no conteúdo da mensagem.
O entretenimento passou a assumir um relevo cada vez maior. Com o aparecimento da SIC, em Outubro de 1992 e, quatro meses depois, da TVI, alargou-se o leque das escolhas e iniciou-se, em grande estilo, a guerra das audiências. O espectáculo generalizou-se, não se limitando aos tradicionais concursos e telenovelas, para se alargar a toda a produção, incluindo até os programas de noticiário ou de debate e comentário político.
Proliferaram, entretanto, os reality shows, subprodutos televisivos de baixo nível mas com muita audiência, critério essencial para a sua subsistência e multiplicação num mundo ferozmente competitivo.
A transmissão da televisão por cabo surgiu no nosso País em 1994 e permitiu o aparecimento de mais canais televisivos nacionais e estrangeiros, proporcionando ao telespectador um leque ainda mais variado de opções. Passámos a acompanhar de perto, muitas vezes, em directo, a cobertura de conflitos armados, de cimeiras europeias ou de actos terroristas.
O futebol, com a paixão clubista que gera, passou a ocupar horários nobres, competindo entre si, em simultâneo, programas nos três canais de notícias por cabo.
A cobertura noticiosa passou a centrar-se cada vez mais nos aspectos ligados ao crime e à justiça. Sinais de uma sociedade com problemas? Por certo! Problemas de corrupção aos mais variados níveis; de crise social e financeira profunda e traumática; de falta de educação e cultura da população; de desinteresse, quando não de desespero, da classe média e da falta de horizontes para os mais jovens; em suma, de grave carência de valores.
Mas será que a “caixa que mudou o mundo” apenas merece palavras de censura?
Não penso assim e, por mim, continuo a tê-la como indispensável companheira. Mas devem reconhecer-se os seus limites e os riscos de uma excessiva exposição à sua influência. Confesso que sou grande consumidor de filmes, beneficiando para isso do privilégio da oferta dos muitos canais temáticos que o cabo põe à nossa disposição. Procuro escolher com algum rigor. Engano-me, por vezes. Mas analiso diariamente a programação oferecida e opto por um filme ou por uma série que me dêem maiores garantias de qualidade ou interesse.
Também vejo com regularidade os principais desafios de futebol, não perdendo os mais importantes das Ligas Europeias e de alguns Campeonatos lá de fora. Já no que à nossa Liga se refere, admito o meu cansaço e a minha desilusão, não só com a modéstia geral do futebol praticado e com o fraco nível médio das arbitragens, mas também com o circo montado em redor pela imprensa da especialidade, canais de televisão incluídos, e com a triste saliência de muitos dirigentes sem nível e sem ética.
Mas a televisão tem agora um marido, que é o computador, e um enteado, que é o telemóvel. Todo a sua utilização deve ser criteriosa, se não quisermos continuar a caminhar na senda da incultura. É que toda a evolução tecnológica, sendo geradora de desenvolvimento e progresso, também pode ser fonte de alienação, quando não de servidão!