Não li o programa do Governo sobre a habitação, recentemente aprovado na Assembleia da República exclusivamente pelo partido que ali possui maioria absoluta.
O que sei será aquilo que o cidadão comum viu e ouviu na comunicação social. E não sei se nele se aborda a problemática dos sem-abrigo. O que sei e me envergonha, e deveria envergonhar toda a sociedade, é ver como vem aumentando o número de gente sem abrigo, enrolada em cartões e cobertores, na gare do Oriente. Isso sei e sei também como aqueles humanos, humanos como eu, enchem os patamares de um e do outro lado daquele amplo espaço subterrâneo. E ouço que o mesmo se verifica noutros locais, mas falo da gare do Oriente porque é ali que a minha experiência os descobre com frequência porque por ali passo frequentemente.
Houve tempos em que o número foi diminuindo, mas nos últimos anos ele parece-me cada vez maior sempre que por ali passo e dou com aquela situação deprimente. Deprimente para quem ali se encontra ferido na sua dignidade e deprimente para quem por ali passa, pelo menos para aqueles que não perderam de todo o sentido da humanidade do Homem. E espero que sejam todos aqueles milhares de pessoas que diariamente por ali circulam em formigueiro contínuo. E mais deprimente ainda porque sei que a situação também me diz respeito como cidadão. Eu que, como tantos, passo de mãos a abanar ou carregado com um saco de compras a caminho do automóvel estacionado ali perto no parque de estacionamento na parte superior daquelas arcadas que sustentam o subterrâneo. Eu, que me sinto completamente impotente, como outros, embora a situação me diga respeito, como cidadão e membro da comunidade humana. São nossos irmãos que fazem daquele espaço a sua casa. A sua casa, o seu abrigo. Situação deprimente e inquietante para uma consciência colectiva enquanto se mantiver desperta. Ditos sem-abrigo, são também marginalizados da sociedade a que pertencem. E ouvi um dia um candidato a Presidente da República a dizer que os sem-abrigo seriam uma das suas preocupações. Se foi, parece que já não é. Lamento dizê-lo.
Desde os tempos da pré-história até aos tempos hodiernos, nunca o problema da habitação deixou de interessar os humanos cujo existência não pode prescindir de um abrigo. Pode mudar e variar o ângulo de observação, a mentalidade da época ou das culturas, podem variar os estilos e as escolas, podem variar as necessidades emergentes, podem variar os recursos materiais, mas a necessidade de abrigo, que lhe sirva de protecção, tranquilidade e repouso, sempre está presente e sempre acompanha a vida material e espiritual dos habitantes deste planeta, que é casa comum de todos. Buraco escavado na rocha, gruta, tenda ou cabana, casa, luxuoso apartamento ou palácio de príncipes e reis, sempre está o ser humano à procura de um abrigo.
Buraco, gruta, tenda, cabana, casa ou palácio, é ali que o Homem, cada ser humano, constrói um mundo próprio, uma espécie de microcosmos compreendido como uma espécie de «centro do universo», como dizem antropólogos, com razão. Buraco escavado na rocha ou palácio de reis, rainhas e princesas, as casas falam muito para além das paredes, toscas e improvisadas ou artisticamente elaboradas. Falam das experiências vividas, das alegrias e tristezas, das intimidades e sonhos havidos, da luta pela sobrevivência, falam do sono e da vigília. Falam da alma para além do corpo, do tempo para além dos tempos e da vida para além das vidas. É por isso que, quem não encontra casa, seja um sem-abrigo, um casal, um professor, quando as portas se vão fechando perante o pobre recheio das suas possibilidades financeiras, não são só as paredes que faltam. É também o recheio da alma com a sua riqueza ou a sua pobreza espiritual.
Sempre presente desde a pré-história, a gruta, a cabana, a casa ou o palácio real passaram a constituir-se expressão e símbolo de modo de vida, de riqueza e de pobreza material e espiritual que andam tanta vez por caminhos contrapostos, tantas vezes a riqueza material anda acompanhada de miséria espiritual, e tantas vezes uma grande riqueza espiritual caminha a par com um total desprendimento das realidades materiais. Quem não o sabe? Não sei se será por isso que Mia Couto escreveu: «O importante não é a casa onde moramos, mas onde, em nós, a casa mora.»
Também aqui ficaram na História os exemplos da Hélade, essa antiga Grécia da cultura e humanismo onde a sobriedade dos templos e os belíssimos edifícios públicos contrastavam com as casas particulares, por norma relativamente modestas.
Consta que o magnífico Péricles do século grego das luzes habitava um pequeno casinhoto e, reza a tradição, que muitas vezes terá batido com o capacete na ombreira da porta, baixa e toscamente construída.
A tradição nada nos diz sobre a casa de Sócrates, mas é sabido que passava os dias na praça e azinhagas adjacentes a despertar os espíritos atenienses para a verdade, a bondade e a beleza. Também nada nos diz a tradição sobre a casa de Platão, mas é sabido que vivia num jardim meditando e desenvolvimento com seus discípulos os ensinamentos de Sócrates, seu mestre.
Também é na antiga Grécia que encontramos alguém que se dizia «cidadão do universo», defendia que a coisa mais bela do mundo era a «liberdade de expressão» e que a verdadeira liberdade requeria austeridade material e vida frugal. Quem assim pensava era Diógenes, esse cidadão que vivia num tonel em permanente luta contra a hipocrisia e o luxo. E contra a corrupção e a mentira, diríamos hoje. Consta que um dia viu uma criança a beber água de um riacho servindo-se de uma concha feita com as próprias mãos. Vai daí, lança contra a parede a sua tigela de barro de que se servia para beber e, enquanto aquela se desfazia em cacos, ia gritando para quem o queria ouvir:
– Até uma criança me dá lições de vida.
Histórias de outros tempos, bem contrastantes com as histórias de hoje nas nossas sociedades da abundância e do consumo desregrado onde as crianças aprendem cedo a pedir tudo o que das montras lhe agrada à vista ou que a tecnologia mediática as incentiva para novas experiências.
Histórias de outros tempos, bem contrastantes com as histórias de agora em que parece já não haver opção existencial de vida, numa gruta, cabana ou simples apartamento, que possa atingir o centro de uma «economia que mata» e que deixa nas franjas gente a viver no bojo de uma moderna engenharia de cimento e aço que mais parece um imenso tonel onde se abrigam milhares de humanos, não por opção existencial voluntária, como o velho Diógenes, mas forçados pelas dolorosas condições sociais.
Escrevo com os olhos toldados pelas imagens das guerras. Guerra já longa na Ucrânia, no centro da Europa, e guerra de alguns dias ali, no Médio Oriente, na terra pisado por Jesus de Nazaré, Ele que terá nascido numa gruta de pastores, enjeitado pelas casas de acolhimento humano. Guerras de mortes e destruição. Mortes de inocentes, incluindo crianças e destruição das casas, abrigo do Homem. E abrigo de seres humanos que, quando salvos, aumentam o número de gente sem abrigo neste nosso mundo em que o Homem, sempre à procura de uma casa para o corpo e para a alma, parece ter perdido, em tantas ocasiões, a humanidade.
Ansiada por todos os humanos, a casa será um reflexo da alma e moldura da vida de cada ser humano, como o será da alma e da vida de uma comunidade política e de toda a Humanidade, seja ela um buraco, uma palhota, uma cabana, uma tenda, um apartamento, uma mansão ou um palácio. Ou um enorme tonel feito num subterrâneo protegido por cimento e ferro a suportar comboios de alta velocidade de quantos mudam de casa todos os dias. Na gare do Oriente, em Lisboa, ou noutra qualquer metrópole do vasto mundo, incluindo a cidade de Roma.
Guarda, 11 de Outubro de 2023