OS LIVROS NO CAMINHO DO HOMEM
A Carta a El-Rei D. Manuel Sobre o Achamento do Brasil, escrita por Pêro Vaz de Caminha, em 1500, foi dirigida ao rei português, D. Manuel I, por altura da descoberta do Brasil pelo navegador Pedro Álvares Cabral. É um documento essencial e curioso de um momento único da História e da cultura portuguesa e brasileira.
Trata-se de uma verdadeira carta-narrativa, na qual são descritos a geografia, a fauna, a flora do Brasil, a aparência e a psicologia dos nativos, os métodos e experiências de contacto dos portugueses e as reações mútuas. É o primeiro testemunho da existência de um mundo até então desconhecido dos povos ligados por vizinhança geográfica, embora separados pelo oceano, de uma realidade que mudou verdadeiramente a face da terra. Foi escrita no período crucial dos Descobrimentos, nos tempos em que a ciência náutica finalmente tornou possível fazer o reconhecimento do nosso planeta.
Entre as tripulações dos navios da frota de Pedro Álvares Cabral encontrava-se Pêro Vaz de Caminha, que registou todos os episódios do descobrimento numa carta cujo original se conserva no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Tudo indica que a carta foi sendo redigida dia a dia, e os seus termos refletem o deslumbramento do encontro de um novo mundo. O primeiro desembarque dos portugueses no Brasil é narrado com muitos pormenores; entre muitas outras cenas, Pêro Vaz de Caminha descreve a aventura de um jovem português que se internou no bosque e arrastou os nativos para um bailado ao som de uma gaita de foles de Entre Douro e Minho: “Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer, levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita e meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele mui ao som da gaita. Depois de dançarem fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito; e, conquanto os com aquilo muito seguro e afagou, tomavam logo uma esquiveza como monteses e foram-se para cima.” Nesse mesmo texto diz-nos da impressão que lhe causou a beleza dos nativos: “andam muito bem curados e muito limpos e naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias montesas que lhes faz o ar melhor para um melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode mais ser; e isto me faz presumir que não têm casas nem moradas em que se colham e o ar a que se criam os faz tais, nem nós ainda até agora vimos nenhumas casas nem maneira delas.
(…)
Ao domingo de Pascoela, pela manhã, determinou o capitão d’ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se corregessem nos batéis e fossem com ele; e assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperável e dentro nele alevantar altar muito bem corregido e ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Anrique em voz entoada e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que ali todos eram, a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção. Ali era com o capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre alta, à parte do Evangelho. Acabada a missa, desvestiu-se o padre e pôs-se em uma cadeira alta e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho. E, em fim dela, tratou de nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da cruz, sob cuja obediência vimos, a qual veio muito a propósito e fez muita devoção. Enquanto estivemos à missa e à pregação, seriam na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como os d’ontem, com seus arcos e setas, os quais andavam folgando e olhando-nos, e assentaram-se. E, depois d’acabada a missa, assentados nós à pregação, alevantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias, duas ou três, que aí tinham, as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três traves, atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra senão quanto podiam tomar pé.”
Devido à sua importância para a História da Humanidade a Carta de Pêro Vaz de Caminha foi incluída no Registo Memória do Mundo pela UNESCO em 2005.