DOIS DEDOS DE HISTÓRIA
A ideia original para a construção de uma biblioteca em Veneza partiu de Francesco Petrarca durante uma estadia que efetuou na cidade, no século XIV. Em 1362, decidiu doar os seus livros à República para que se desse início a uma coleção maior e para poderem ser disponibilizados a estudiosos e amantes da literatura e da cultura.
A Biblioteca Marciana de Veneza situa-se em frente ao Palácio ducal, num edifício do século XVI que os procuradores de São Marcos da época escolheram para sede dos seus escritórios.
O edifício é da autoria do arquiteto Jacopo Sansovino, um romano que fugiu para Veneza quando as tropas imperiais saquearam Roma. Por ser romano, introduziu em Veneza um estilo novo, desconhecido na cidade. Por esse motivo, Andrea Palladio, o grande arquiteto dos finais do século XVI afirmou que o edifício era uma das obras mais notáveis construídas desde o período clássico. O estilo pode definir-se como a harmonização do mais nobre estilo clássico renascentista com a pitoresca atmosfera veneziana.
A obra começou por ser erigida a partir da esquina do campanário, na Praça de São Marcos, mas a estrutura ruiu quando estava quase concluída. O arquiteto foi considerado culpado pela catástrofe e chegou a estar preso, mas foi libertado graças à influência de alguns amigos. Foi reabilitado e, em 1547, reconduzido no cargo depois de ter pago, a expensas próprias, a reconstrução da obra.
Seguiu-se um período de reconstrução do edifício. Assim, em 1554 já estavam erguidos 16 arcos e, em 1582, os trabalhos chegavam à beira da água.
Atualmente, o edifício acolhe a Biblioteca Marciana, uma das bibliotecas mais importantes de Itália. Pelos seus pórticos também se pode aceder ao museu arqueológico. Na instituição está guardada a preciosa coleção de manuscritos gregos e latinos, oferecidos à República de Veneza pelo cardeal grego Besarion, em finais do século XV. Este fundo, constituído por aproximadamente 750 códigos, 250 manuscritos e obras impressas, é considerado a coleção principal desta biblioteca e uma das mais valiosas de Itália, o que sempre prestigiou Veneza entre as suas congéneres italianas.
A biblioteca foi sendo enriquecida ao longo dos séculos, principalmente devido à transferência das bibliotecas de alguns mosteiros, e a obrigação imposta às imprensas locais de entregarem uma cópia de cada livro publicado, como obrigava uma lei veneziana de 1603. Após a queda da República de Veneza, a biblioteca continuou a ser aumentada devido às abolições de ordens religiosas por Napoleão, cujas bibliotecas foram incorporadas na Biblioteca Marciana.
A sala da biblioteca do piso superior foi ricamente decorada, o que demonstra, também, a relevância assumida pelos venezianos em relação à cultura do Renascimento e o desejo de mostrarem a estima que sentiam pelos manuscritos de Besarion. Esta sala encontra-se decorada com 21 pinturas, resultantes de um concurso levado a cabo em 1556-1557 entre os mais prestigiados pintores de Veneza. Na seleção das pinturas encontrava-se precisamente o arquiteto da obra e o seu grande amigo Ticiano, um pintor que gozava do maior prestígio na cidade da laguna. O tema escolhido para os pintores se basearem foram os deuses da Antiguidade enquanto personificações das virtudes e das artes. O vencedor do concurso foi Varonese, que apresentou um quadro sobre música, canto e honra. O prémio foi um valioso colar de ouro.
Mas outros quadros foram também escolhidos. O próprio Ticiano apresentou um quadro, Sapientia (Sabedoria), que se encontra exposto no vestíbulo da sala de leitura, embora o tenha pintado sete anos depois da abertura da sala. Pode ser visto como uma espécie de comentário às pinturas da geração mais jovem representada na sala. Para pintar o quadro, Ticiano baseou-se nas cores claras de Veronese e demonstrou, face aos artistas mais jovens, que ainda estava em condições de pintar tão bem quanto eles, considerando a harmonia de cores e a representação do corpo humano. O local onde foi colocado o quadro Sapientia estava originalmente destinado para sala de conferências, onde os estudiosos e os eruditos realizariam as palestras públicas dirigidas à nobreza de Veneza.
Atualmente, a Biblioteca Marciana depende do Ministério da Cultura italiano, possui cerca de 1 milhão de volumes, 13 mil manuscritos e mais de 2.800 incunábulos. O seu edifício continua a ser encarado como uma verdadeira obra de arte, pela decoração, esculturas e tetos primorosos e continua a desempenhar um importante papel na vida cultural da cidade de Veneza. Qualquer estudioso a pode frequentar, embora apresente restrições de entrada a turistas.