É um ano bissexto este 2024 em que nos encontramos.
É, pois, um ano em que o tempo faz contas ao tempo acrescentado um dia ao ano. E isto de quatro em quatro anos, como bem se sabe. E no mês de Fevereiro, invariavelmente. É a originalidade deste mês. O calendário vai-lhe retirando dias aos meses de Fevereiro nos anos comuns para o presentear com mais um dia a cada quatro anos. Um dia oferecido num ano para três retirados em anos anteriores constitui admirável elemento das engenharias contabilísticas que os seres humanos vão criando para se integrarem com algum equilíbrio nos movimentos astrais. As nossas leis têm de se conjugar com a harmonia do cosmos. Maravilha! Do cosmos e da engenharia matemática que os humanos engendram para com ela viver.
Em cada ano bissexto lembro-me dos que nasceram no dia 29 de Fevereiro com sentimentos contraditórios. Fantasiosamente poderei invejá-los porque se mantêm jovens quando outros, nascidos no mesmo ano, já lá vão para as dezenas. Mas, coitados, só cada quatro anos é que podem celebrar com rigor o seu aniversário. Celebrá-lo antes, a 28, é uma antecipação desaconselhável, e celebrá-lo no dia seguinte já é tarde demais. Até já é outro mês. Já não é Fevereiro. É já Março.
Também eu nasci em ano bissexto e, se me tivesse descuidado a nascer, seria um jovem actual a celebrar um ano de quatro anos. E seria uma festa mais festa do que a festa dos outros três. Livrei-me a tempo desta jogada do tempo. Com redobrada alegria, todos os anos faço anos no mesmo dia. Todos os anos posso cantar a vida nascente. Enquanto a minha vida for tempo. Maravilha! Do tempo, que nem sabemos bem o que ele é, e das nossas vidas dançadas ao seu ritmo.
Todos os dias o Sol nasce e todos os dias o Sol de põe. Horas depois voltará a nascer e depois voltará ele a pôr-se. Bem, todos o sabemos: o Sol não nasce nem o Sol se põe. É a Terra que o mostra para se fazer dia e é a Terra que o esconde para se fazer noite. Enquanto circula em volta do Sol em movimento de translacção, a Terra dança no espaço rodopiando sobre si em eixo imaginado por nós. É o conhecido movimento de rotação da Terra, celebrado todos os anos a 8 de Janeiro, dia em que, em 1851, o físico e astrónomo francês León Foucault (1819-1868) realizou a comprovação pública daquele movimento, socorrendo-se de uma situação experimental que ficou conhecida por Pêndulo de Foucaud. Dele existe uma réplica no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, e o experimento virou título de uma obra literária do escritor, filósofo e linguista Umberto Eco (1932-2016). Maravilha! Da criatividade humana que engendra experimentos com que se faz ciência e que combina as letras e as palavras de que se faz a beleza do texto literário.
Mas não, não são retirados dias aos anos comuns, como antes se insinuou. É o ano que mantém cativas algumas horas para as juntar todas perfazendo mais um dia num ano. Engenharia contabilística no relógio astral. Uma espécie de ministro das finanças a contabilizar o movimento da banca durante três anos para dar folga ao governo em ano de eleições. Será, então, o ano bissexto do sistema galáctico da política.
O ano do calendário civil por que nos guiamos tem 365 dias. A Terra, porém, é mais lenta a dar uma volta ao Sol. Ela demora 365,2425 dias a viajar à volta do Sol e não os sobreditos 365 dias. Ou seja, 365 dias mais 5 horas, 49 minutos e 12 segundos, isto é, ¼ do dia. E a conta é bem fácil de realizar: 0,2425 multiplicado por 4 dá sensivelmente a unidade, a unidade de um dia. É o tal dia que se vai contabilizar no Fevereiro dos anos bissextos. Em cada ano comum ficam cativas 6 horas que é o que corresponde a 0,2425 do dia e o ano bissexto terá 366 dias.
Já estamos a ver a importância desta engenharia contabilística do nosso calendário gregoriano, nome que homenageia o Papa Gregório XIII (1502-1585) que o introduziu em 1582 em substituição do calendário juliano implantado por Júlio César (100-44 a.C.) no ano 46 a.C. De facto, se não acrescentássemos um dia extra ao mês de Fevereiro de quatro em quatro anos para compensarmos os quartos de dia em falta, com o passar do tempo, muito tempo certamente, as estações deslocar-se-iam tanto que o Verão seria Inverno e o Inverno seria Verão.
Um ano bissexto de quatro em quatro anos. Sim, mas… Mas não é bem assim. É uma verdade lapalisseana: as 5 horas, 49 minutos e 12 segundos, referidas acima, não equivalem bem a 6 horas. A regra do calendário gregoriano é um pouco mais complexa e pressupõe outros cálculos e outros arranjos. Mas… adiante.
Bissextos, por que razão tal nome? Aponta-se frequentemente uma explicação simples que, parecendo embora intuitiva, não corresponde à realidade histórica. Segundo esta intuição popularizada, a palavra «bissexto» teria origem no facto de estes anos possuírem 366 dias. Seriam bissextos aqueles anos em que o dígito “6” aparece repetido. Bissexto significaria “bis seis”. É verdade que a palavra «bissexto» significa, literalmente, «duas vezes seis», mas a origem da palavra tem uma história bem definida e remonta aos tempos da instituição do calendário juliano.
Foi no ano 45 a.C. que se deu a implantação do calendário juliano. Foi então que, por determinação de Júlio César, o dia adicional do ano bissexto ficou incluído no mês de Fevereiro conforme a expressão latina: ‘ante diem bis sextum Kalendas Martias’ [repetição do sexto dia antes das calendas de Março]. Sabendo que o mês romano estava dividido em três períodos, «Calendas» [primeiro dia do mês] em que tem raiz a nossa palavra «calendário», «Nonas» [o quinto ou o sétimo dia do mês, conforme os meses] e «Idos» [o décimo terceiro ou décimo quinto dia, de acordo com o mês] e considerando a contagem regressiva dos dias, o sexto dia antes das Calendas de Março correspondia a 24 de Fevereiro. Repetia-se, assim, o dia 24 de Fevereiro, o sexto dia antes do primeiro de Março. “Bis sextum”, ou seja, duas vezes o sexto. No nosso calendário não há a repetição de um dia, mas o acrescento de um ao mês de Fevereiro que terá então 29 dias e o ano correspondente 366.
Interessante! Dirão alguns. Confuso! Dirão outros. E todos terão alguma razão. Mas confusos, confusos, terão andado os nossos antepassados longínquos quando ainda não haviam inventado calendário para se orientarem no tempo. Imaginemo-nos, se é que temos capacidade para tanto, a viver sem calendário. Sem horas, sem semanas, sem meses, sem anos. sem séculos, sem milénios. Simplesmente a escuridão da noite seguida da luz do dia e a luz do dia seguida da escuridão da noite. E tudo sem conta e medida, sem datas de nascimento, nem de aniversário, só conduzidos pelas transformações da natureza e dos luzeiros da abóbada celeste. Felizes, nós, que nascemos já encaixados num calendário. Quando devemos aos nossos maiores!
Maravilha, então! Da inteligência humana que da confusão primordial da história humana soube extrair a ordem temporal onde encontra cada um o dia do seu aniversário que até poderá ser o 29 de Fevereiro.
Maravilha! Da inteligência humana e de todos os povos que, do Oriente a Ocidente, do Norte a Sul, souberam criar o seu próprio calendário. Porque nem só do calendário gregoriano vivem os seres humanos. Outros povos e outras culturas tiveram, e têm, calendários próprios com que harmonizam as suas vidas. E, de vez em quando, chegam-nos vozes dos seus nomes: calendário egípcio, asteca, persa, hebraico, islâmico e o lunar do Oriente cujo Ano Novo é a 10 de Fevereiro. Todos, quanto julgo saber, a tentarem harmonizar o tempo humano com o tempo astral, particularmente da Lua e do Sol. Com anos bissextos ou não, um calendário universal, perfeito e perpétuo será, talvez, uma miragem. Mas isso também é maravilha que dá alento à maravilhosa aspiração da criatividade humana.
Passe bem, leitor, o dia 29 de Fevereiro e todos os dias deste ano da graça de 2024 ao qual, graças ao engenho linguístico do ser humano, chamamos bissexto.
Guarda, 12 de Fevereiro de 2024