Entrevista: Irmã Maria, Madre Prioresa do Carmelo da Santíssima Trindade, na Guarda

A Irmã Maria da Cruz e da Trindade, Madre Prioresa do Carmelo da Santíssima Trindade, na Guarda, assinala, no dia 14 de Julho, 25 anos como Carmelita Descalça. Em entrevista ao Jornal A GUARDA dá a conhecer a vida, no interior do Carmelo da Guarda, situado na Quinta de Nossa Senhora do Mileu, paredes meias com a Urbanização dos Castelos Velhos e uma superfície comercial e que no dia 13 de Julho assinala 25 anos da Dedicação da Igreja.É natural de Vila Real de Trás os Montes, tem o Curso Superior em Artes  (Na Escola Superior no Porto) e o Curso Superior de Teologia (incompleto).
A GUARDA: No dia 14 de Julho faz 25 anos como Carmelita Descalça. Como começou a sua história vocacional?  
Irmã Maria: A minha família foi sempre muito piedosa e sempre se rezava o terço lá em casa! O meu pai chegou a ser noviço dos Salesianos, mas a solidão afectiva foi o ponto de discernimento para regressar definitivamente à casa paterna! Poucos anos depois encontrou a minha mãe! Minha mãe tinha uma ligação muito particular a Nossa Senhora de Fátima. Ambos cuidaram com esmero da nossa educação cristã e um grande amor à verdade. Lá em casa havia sempre um mini-altar em todos os sítios onde minha mãe permanecia nos seus trabalhos caseiros. A presidir à família tínhamos um pequeno «santuário» da Sagrada família onde brilhava noite e dia uma pequena luz. Éramos uma família feliz porque rezávamos, disto estou convicta! Recordo que uma das minhas irmãs e eu disputávamos os joelhos do meu pai para rezarmos o terço! Belos tempos, não é? Creio que a minha história vocacional começou assim… apesar de só muitos anos mais tarde ter recebido um chamamento concreto para «pertencer só a Deus e a mais ninguém!» como gosto de dizer!
A GUARDA: A sua vocação foi uma escolha, como quando se escolhe um Curso ou um passatempo?
Irmã Maria: Não posso dizer que tivesse sido assim, porque a Vocação com letra maiúscula não é uma chamada a «fazer qualquer coisa» como é a de um Advogado, um Médico…, mas é algo que se realiza na fé. Não é uma decisão cerebral ou de gosto próprio; nada tem a ver com altruísmo, mas sim uma resposta relacional a um TU que se tornou vivo e que é Deus! 
A GUARDA: Pode explicar-nos um pouco o que é o Chamamento de Deus?
Irmã Maria: Claro que sim, mas tenho consciência que a experiencia vocacional é algo que pertence ao foro de Deus e por isso não se pode explicar de forma adequada. Um dia, uma das Irmãs desta Comunidade, quando estudava na faculdade, pôs-se-lhe a questão vocacional e foi ter com uma colega que sabia que ia entrar nas Irmãs Doroteias e estabeleceu-se este diálogo:- Como é que soubeste que és chamada por Deus?­- Eu estava num quarto escuro…e de repente acendeu-se uma luz!- Fico tranquila porque nem estou num quarto escuro nem vejo nenhuma luz!!!! Contudo, só de escutar da boca de um Sacerdote esta pergunta: «Se Jesus te chamasse, tu ias?» …ficou inquieta e já nada a preenchia! Como explicar o que «viveu»? Impossível! Apenas podemos identificar consequências desse «choque» interior, mas explicar esse chamamento é quase impossível! O Chamamento de Deus é algo de maravilhoso; não possui palavras tangíveis como as nossas quando comunicamos ou chamamos alguém…é antes uma atracção maravilhosa que incute simultaneamente descanso e profunda paz interior, porque encontramos o centro, o sentido do nosso afecto, da nossa vida. Isto é um tesouro que temos de salvaguardar a todo o custo, porque, não sei se sabe, esse «chamamento» pode, ao longo do tempo, perder o encanto, a vitalidade inicial, a relação com esse «TU» pode enfraquecer se não houver cuidado em actualizá-la! O «chamamento» é um sentir-se atraído poderosamente para um Tu que nunca vimos, nunca palpamos, é uma relação Pessoal que incute amor e ao mesmo tempo inquietação no sentido de não podermos ficar descansados até encontrarmo-nos plenamente com Ele! Mais do que explicar, podemos falar das consequências que se traduzem, em geral, pela poderosa reorientação de toda a nossa vida anímica, física e psíquica! Isto provoca como que o desinteresse e o vazio de tudo: conversas, amigos, carro, curso, o projecto de formar família, os passatempos, os jogos…tudo, tudo… deixa de ter a importância absoluta a que normalmente o ser humano dá! Isto não é desprezo pelos dons humanos, não! É colocar tudo no seu devido sítio, porque só Deus é o único valor absoluto… e temos experiência disso! Quando fui «chamada» esse chamamento vinha carregado de afecto pessoal imenso! Compreendi logo o quanto Deus ama cada um tal como é! Entrei numa alegria que me fazia sentir plena como pessoa humana... Deus deixou de ser uma ideia bonita para ser uma realidade «pessoal e concreta», tornou-se nesse momento o alvo do meu olhar e o motivo do meu viver! Deus ficou a ser o único ponto que me atraía e continua a atrair mais profundamente, e quanto mais profundamente Deus se vai revelando, mais desejos tenho d’Ele, tornando-se, para mim, o único projecto de vida.
A GUARDA: Quando teve a experiência de ser chamada e como respondeu a ela? 
Irmã Maria: Recordo que estava a ler uma revista missionária, concretamente um testemunho de um jovem que tinha ido fazer voluntariado a África. Na realidade não foi nada do que li, nem sei agora do que se tratava, mas foi nesse momento que fui apanhada por um grande Amor desde dentro de mim. Estava sentada a ler essa revista, na casa de um dos meus tios sacerdotes e, de repente, saltei da cadeira e dei um berro estrondoso e gritei: «Encontrei o sentido da minha vida!» e toda a família correu a ver o que me tinha acontecido! Nesse momento, ao saltar da cadeira ela caiu e saí porta fora…Foi à maneira de «bomba-surpresa», senti-me preenchida e amada profundamente, assim de repente! Saí de casa a correr numa tarde de Agosto que sufocava de calor, mas já não me importava e fui agradecer a Jesus na Igreja próxima!...Quando passei em frente do Altar de Nossa Senhora de Fátima até me pareceu que a Senhora se inclinou para mim sorrindo! Pode ter sido ilusão, mas guardo na memória este acontecimento singular! Depois de muito andar e passar por situações de missão finalmente entrei no Carmelo! Devorava-me a sede de Deus! 
A GUARDA: E quando percebeu que Deus a chamava a ser Carmelita Descalça, como reagiu?
Irmã Maria: Num primeiro momento não compreendi a vocação contemplativa e disse a mim mesma: para trás das grades não! É que eu tinha e continuo a ter uma grande «paixão» pelas missões, pelo anúncio de Jesus Cristo! Mas pedi logo desculpa ao Senhor porque Ele quando chama é para nos fazer felizes!  Intuí fortemente que a minha vocação não era fazer coisas tipo tratar de velhinhos, dar aula em algum Colégio, nem sequer ir para as Missões, queria-O a Ele mesmo, viver uma história de amor pessoal com Alguém que é Deus! E isto é ser carmelita descalça. Percebi que a minha vocação seria viver esta entrega total no silêncio e na Relação com ELE. Sim! Nós trabalhamos também, mas tudo adquire sentido de eternidade! Entrei para o Carmelo em Coimbra, mas foi neste Carmelo da SS Trindade no Sopé da Serra da Estrela, que fiz a entrega definitiva aos planos de Deus sobre mim em 1996. Por isso, em Julho próximo, completo 25 anos desta entrega que não troco por nada! A minha vida tem a tónica da felicidade. Isto não quer dizer que o sofrimento ou as dificuldades inerentes ao ser humano estejam ausentes, mas até o sofrimento tem o sentido de intercessão e de eternidade! Ninguém pode imaginar o que seja uma vida iluminada por esta entrega de coração a coração! Eu canto, danço de alegria e de Amor só para Ele diante do Sacrário, por exemplo! Continuo permanentemente enamorada d’Ele que me amou e se entregou por mim! Sou uma pessoa feliz, sou como uma pessoa «muito bem casada», e muito amada.  Como poderia ser infeliz, se o contacto permanente com Deus que faz parte da nossa vocação me deu a experiencia de ser amada por Ele? É por isso que as pessoas não imaginam o que é viver a alegria de uma entrega total a Deus! Coração a coração!
A GUARDA: Porque veio para a Guarda? 
Irmã Maria: Conforme disse, entrei para o Carmelo em Coimbra, onde dei os meus primeiros passos como Carmelita Descalça. Sempre fui bem acolhida e nunca tive dúvidas da minha vocação. Entretanto o Senhor Dom António dos Santos, então Bispo da Guarda, manifestou o desejo de ter uma comunidade Contemplativa de Carmelitas Descalças na sua Diocese e por isso viemos para cá. Ele dizia que uma Comunidade Contemplativa é um Suporte Poderoso numa Diocese…como uma central de energia… Quando entrei no Carmelo de Coimbra, ao saber desta Fundação, senti no meu coração que Deus me pedia para vir…apresentei-me como candidata e fui aceite! Aliás sentia no coração que Deus me queria aqui!
A GUARDA: Então conviveu com a Irmã Lúcia?
Irmã Maria: Sim, especialmente durante os nossos Recreios. Era muito alegre, graciosa e cheia de vida. As Aparições não eram assunto de conversa!
A GUARDA: Quantas irmãs vivem no Carmelo?
Irmã Maria: Somos a última Fundação de Carmelitas Descalças no nosso País. Actualmente estamos onze Irmãs mas há alturas em que parecemos umas quarenta só pelo barulho que fazemos nos nossos Recreios, que são momentos especiais criados por Santa Teresa de Ávila, para que a nossa vida de silêncio seja aliviada pelo contacto espontâneo entre todas. Trabalhamos, rimos, cantamos, passamos momentos muito alegres! É principalmente aqui que provamos se o Amor recebido de Deus no «silêncio» é verdadeiro! Estes Recreios teresianos ajudam-nos a viver melhor as exigências da nossa Regra de Vida que é a Regra dos Eremitas do Monte Carmelo! 
A GUARDA: Como Irmã de Clausura, sente-se «presa»?
Irmã Maria: Eu não gosto de usar a expressão Irmãs «de clausura» porque não estamos confinadas nem fechadas. Somos Irmãs Contemplativas. Aliás a nossa vida requer uma grande liberdade interior dada pelo Dom da Vocação que é ajudada também pelos espaços belíssimos que rodeiam o nosso Mosteiro, e reservados só para nós. Isto pode ver no nosso Site (http://carmeloguarda. carmelitas.pt). A GUARDA: Acompanham a vida política?Irmã Maria: Nós recebemos visitas, temos Net, apesar de não vermos televisão. Sabemos o que se vai passando e escutamos gente de todas as cores políticas. Aliás, temos bons amigos que são de uma cor política que à primeira vista parece longe de Cristo! Não somos alheias à política, apesar de não ser o tema habitual das nossas conversas! Não lhe temos aversão, mas apenas o interesse necessário! O nosso único amor e projecto é outro: Jesus Cristo! Estamos informadas o suficiente e somos livres de fazer o nosso próprio juízo e votar em consciência. 
A GUARDA: Com a pandemia mudou a vida do mundo cá fora. O que mudou no vosso, aí dentro?
Irmã Maria: Nós não vivemos num mundo à parte, por isso o nosso mundo é o mesmo que o vosso! Os nossos Mosteiros não ficam isolados, longe das cidades. Santa Teresa recomendou que fossem construídos precisamente junto às cidades para que fizéssemos parte da vida delas e pudéssemos rezar pelas necessidades da mesma e do mundo! A vida da Carmelita Descalça é trazer no coração as angústias do mundo e apresenta-las a Deus; é um «arrancar» de Deus mais misericórdia, mais paz para o mundo. Não fica fechada na felicidade da união com Deus! Apesar de parecer paradoxo, terminamos por pensar muito pouco em nós mesmas e muito mais nos outros, nos que sofrem, nos que desesperam por exemplo com esta situação pandémica, nas famílias confinadas sem trabalho ou que não têm espaço suficiente para conservarem a serenidade nas relações pessoais e tantas outras dores que nós identificamos com as de Jesus Cristo! Quanto ao que mudou na vida da nossa Comunidade… exteriormente muito pouco mudou! 
A GUARDA: As Irmãs têm medo da pandemia? 
Irmã Maria: Nenhuma de nós tem medo, mas prudência! Temos tido todos os cuidados. Andamos ocupadas com as nossas responsabilidades e a verdade é que a pandemia não é assunto de que falemos todos os dias. Sabemos de pessoas que adoeceram de tanta notícia que receberam pelos meios de comunicação. Isso não é saudável para a vida psíquica… Vamos rezando e vivendo cada dia na esperança de que tudo melhore e que a humanidade aprenda com este momento tão difícil a mudar comportamentos e hábitos que não são saudáveis! A Pandemia é uma situação que abana as seguranças humanas e coloca a pessoa mais centrada no essencial. Muitas voltaram-se para Deus e compreenderam a nossa vida… apesar de outras terem adoecido! 
A GUARDA: Esta pandemia pode ser um castigo de Deus…?
Irmã Maria: Castigo de Deus não! Deus não castiga, mas corrige e educa para nosso bem! Deus não gosta da pandemia, mas permite o mal porque respeita a nossa liberdade! 
A GUARDA: Como têm sobrevivido economicamente?
Irmã Maria: Bom, algumas irmãs têm reforma, mas vivemos essencialmente de ajudas e de pequenos trabalhos de artesanato.
A GUARDA: Como encara o futuro como Carmelita Descalça? 
Irmã Maria: Com uma grande esperança porque nada acontece por acaso! Quanto ao futuro estamos nas mãos de Deus! Vivemos d’Ele, é o motivo da nossa vida, é o nosso único tesouro! As dificuldades que vêm do exterior não podem sufocar nem atemorizar a nossa relação com Deus! A pandemia não nos provoca ansiedade, apesar de provocar sofrimento ao vermos como o mundo está…! Vemo-la, apesar de ser um mal, como uma oportunidade de mudança como já referi! A nossa paz e serenidade diante do inevitável centra-se na relação pessoal com Jesus Cristo, que não depende de nenhuma forma da pandemia nem fica confinada às quatro paredes do Mosteiro! Jesus Cristo é o nosso único projecto de vida! Com Pandemia ou sem ela Jesus Cristo não muda, o Seu Amor não muda..! Também não viemos para ser «alguém», para sermos importantes ou figuras de destaque! Não! Viemos para ser d’Ele que não é uma ideia, como tantas pessoas pensam…mas é realmente um «Alguém» vivo que se relaciona…A nossa Vida de oração é precisamente como dizia Santa Teresa de Ávila um «Tratar de Amizade com Quem sabemos nos ama»! Já pode ver que «tratar de Amizade» só acontece entre pessoas livres. E tratar de amizade não é propriamente passarmos o dia inteiro a rezar Pai-Nossos e Ave-Marias…mas é uma relação afectuosa. É a partir desta relação que intercedemos pelo mundo, por cada pessoa que existe no mundo e podemos arrancar do Coração de Deus mais paz e mais misericórdia para todos nós!Quem não compreende isto não atinge o cerne da nossa vocação integralmente contemplativa, que é radical, porque orientado só para Deus e por ser Ele quem é!. O nosso estilo de vida como que provoca escândalo! Muitas vezes apresenta-se com a aparência de «anti-cultura» porque não colocamos ênfase na eficácia humana, ou não vivemos determinados «valores» que não pertencem a Cristo! E isso o mundo não perdoa! Por isso há quem pense que a nossa vida é inútil como alguém já me disse. A nossa vida está projectada para o essencial, vive na liberdade dos Filhos de Deus! Por isso existe esperança, muita esperança, apesar de tudo o que está a acontecer! 
A GUARDA: Qual é a relação que vê entre a Dedicação da Igreja e a sua Consagração?
Irmã Maria: Em ambos os casos existe a Dedicação do Coração ao nosso Deus, e fomos «consagrados», «separados» para uso exclusivo de Deus.
A GUARDA: Uma mensagem para os leitores do Jornal A GUARDA? Irmã Maria: Não vos deixeis prender àquilo que de nada serve para a eternidade!