Valeu a pena passar tantas horas em arquivos e bibliotecas espalhadas pelo país com resultados bem parcos, tantas vezes?

Valeu a pena passar horas infindas em casa agarrado ao computador a tentar decifrar velhos manuscritos dos séculos XVI e XVII, cansando mais os olhos já cansados e, sobretudo, sacrificando tantas vezes a vida em família? Valeu a pena escrever cinco artigos sobre a mesma personalidade, quatro dos quais na revista cultural “Praça Velha” que poucos ou ninguém terá lido? Valeu a pena aproveitar todas as circunstâncias do momento para redigir pequenas crónicas no semanário “A Guarda” na esperança de que os leitores fossem despertando para a obra de um jesuíta nascido na Guarda e que tomou a Carreira da Índia em Março de 1608 para nunca mais regressar à sua cidade? Valeu a pena fazer uma viagem cansativa ao Vietname para pisar a terra que este jovem pisou e tomar banho nas águas de uma baía em que ele morreu afogado quando prestava serviço a portugueses embarcados na lonjura daquelas terras?
Foi em 2008, para evocar o quarto centenário da sua partida para o Oriente, que escrevi as primeiras crónicas sobre Francisco de Pina (1585/6-1625). Uns textos incipientes ainda, como incipiente era a minha pesquisa sobre este jovem guardense que nunca mais regressou à Guarda, sua cidade natal. Foram, depois, quatro artigos publicados na revista cultural “Praça Velha” e, em 2015, um na revista “Brotéria”. Foram ainda outros, muito despretensiosos, que fui publicando ao longo dos anos no semanário “A Guarda”.
É verdade que fui obtendo, sobre o assunto, alguns ecos que muito contribuíram para o meu alento numa tarefa que exige paciência e minucioso trabalho. Mas, salvaguardando um ou outro momento de larvar entusiasmo que é justo salientar, não via a Guarda tomar a sério a importância da acção de Francisco de Pina na longínqua Cochinchina, parte integrante do actual Vietname.
Habitualmente, nos meus textos, havia um ou outro parágrafo em que se manifestava um apelo às gentes da Guarda para interiorizarem a importância histórica deste seu cidadão. Mas imperava o silêncio, enquanto, aqui e ali, ia encontrando intelectuais vietnamitas que, genuinamente, manifestavam o seu dever de gratidão para com Francisco de Pina. Solicitando a melhor paciência ao leitor, recordo alguns extractos.
Assim escrevia na revista “Praça Velha”, N.º 25, em 2009: «Mas o trabalho de Francisco de Pina constituiu-se em letras com que hoje se escreve a história do Vietname, esse país em cujo mar morreu e onde desaguaram as lágrimas de quantos choraram a morte de um guardense que um dia sonhou com o mar das Índias nesta montanha feita de neve onde nasceu.
Avistou-se o mar longínquo da terra de «azul e neve» de onde alguém sonhou. Francisco de Pina, então, embarcou para não mais voltar. Importa que honremos a sua memória e sejamos merecedores da sua consagração internacional. Hoje ficaremos por aqui. Voltaremos amanhã.»
E o amanhã foi-se desenvolvendo em muitos amanhãs. Assim escrevi em 2015 (“Praça Velha”, N.º 35): «Que ao menos neste ano de 2015, ano celebrativo dos 400 da fundação da missão dos jesuítas no Vietname, Francisco de Pina seja lembrado com a devida justiça, como missionário e como o linguista que iniciou o processo de romanização do anamita, substituindo os antigos caracteres ideográficos chineses pelos caracteres latinos e o recurso a múltiplos sinais diacríticos que expressam as tonalidades musicais muito próprias daquela língua. O resultado deste trabalho é o Quôc Ngu, a escrita nacional do Vietname de hoje.
Há 400 anos náufrago nas águas do Mar da China e sepultado nas terras da Cochinchina, Francisco de Pina está vivo no Vietname de hoje. E com ele a Guarda, sua terra natal.»
Em 2018, lançava a hipótese de dois projectos no N.º 38 da revista “Praça Velha”: «Que imagem possuem do Vietname os portugueses? Seja ela qual for, Hoi An (Faifo) e Phuoc Kieu (Cacham) deveriam ter, na fotografia, um lugar de honra que as agências turísticas portuguesas não deverão ignorar nas programações que vão difundindo.
E a Guarda, cidade? Será demais pedir que seja atribuído o nome de Francisco de Pina a uma rua?»
Atrevo-me ainda a recordar extractos de crónicas publicadas neste semanário “A Guarda”.
Em Agosto de 2014, reportando-me ao lugar onde intelectuais vietnamitas pretendem erigir um monumento a Francisco de Pina e seus companheiros, escrevia: «Ao olhar para aquele espaço ainda virgem, repleto de arbustos e plantas aquáticas, a respiração como que ficou suspensa e imaginei ali a Guarda a redimir-se do esquecimento a que votara este seu filho ilustre.»
Em Janeiro de 2016 salientando Francisco de Pina como o homem que, outrora, mais longe terá levado o nome da Guarda, escrevi: «Na actualidade a escrita nacional vietnamita faz bem a diferença entre as outras escritas do Extremo-Oriente. Sepultado em Faifo (hoje Hoi An), Francisco de Pina está vivo no Vietname como viva se encontra a sua língua nacional, o Quoc Ngü, de que se faz a sua literatura. A Guarda bem o pode integrar no grupo dos seus filhos que mais longe levaram o nome da cidade e cuja acção permanece nesse Oriente distante.»
E, noutro número do final deste mesmo ano, voltava à mesma ideia e escrevia: «Anda aqui o dedo e o coração de Francisco de Pina! Será que a Guarda, onde ele nasceu em 1585 (?), alguma vez reconhecerá a importância internacional do seu trabalho realizado lá no longínquo Oriente? Talvez a Guarda dificilmente encontre outra figura histórica que tenha levado o seu nome tão longe, no espaço e no tempo.
Morreu a 15 de Dezembro de 1625, mas a sua obra está viva, lá na distante Cochinchina, lá nas lonjuras do Vietname. No fruto do seu trabalho está também a sua cidade, a nossa Guarda.»
Em Outubro de 2019, entusiasmado com o que ouvira de alguns académicos vietnamitas em Lisboa, atrevia-me a escrever: «Não sou profeta nem adivinho, mas creio que a Guarda vai ser visitada num futuro próximo por turistas vietnamitas.»
E regresso à revista “Praça Velha”, saído recentemente. A terminar o artigo intitulado «Francisco de Pina, revisitado», escrevi com atrevimento: «Aproxima-se o ano centenário da morte trágica de Francisco de Pina. Com os meios que hoje a ciência e a técnica põem à nossa disposição teria todo o interesse em agilizar um processo de descoberta do local do túmulo. Quanto posso saber já há intelectuais vietnamitas interessados no problema. Seria um excelente reencontro do mestre de língua com a História. História do Vietname e de Portugal e da Guarda.»
Envolvido num inesperado projecto cinematográfico que o tempo desvendará, Francisco de Pina levou-me em Julho passado ao Vietname. E de novo visitei Phuoc Kieu (antiga Cacham), a localidade de predilecção deste jesuíta da Guarda. Aí, recentemente, foram descobertos três túmulos antigos. Julga-se que um deles poderá ser de Francisco de Pina. E o espaço rapidamente mereceu um notável enquadramento - monumental, histórico, cultual, estético e religioso - que não deixará indiferente nenhum visitante.
Intelectuais vietnamitas querem instalar na Guarda uma estela de reconhecimento do povo vietnamita para com Francisco de Pina. E já se estão a agilizar meios e recursos. De lá com os materiais e as mãos dos seus artistas. De cá com a abertura e o entusiasmo das autoridades locais.
Valeu a pena passar catorze anos obcecado com a vida de um homem que, nascido na Guarda, morreu, náufrago, a 15 de Dezembro de 1625, nas longínquas águas da costa da velha Cochinchina, no actual Vietname? Valeu a pena? Se valeu!
Guarda, 1 de Setembro de 2022