O VERÃO DO NOSSO DESCONTENTAMENTO


Esta não é uma crónica sobre o Mundial de Futebol. Tem antes por objecto as acrescidas razões de tristeza da nossa gente neste Verão de 2014. E aborda ainda os conflitos entre a razão e o coração, a par da bipolaridade tão lusitana que nos faz passar do óptimo para o péssimo de um dia para o outro. E, se quiserem, trata ainda da lealdade e da mesquinhez!
Com o início do Mundial do Brasil, o país como que ficou a flutuar no espaço, o povo pairando dentro de uma bolha irreal de entusiamo e esperança. Os media, em compita ruidosa e obsessiva, passaram a ocupar-se quase exclusivamente de futebol, de vitória e do “melhor jogador do Mundo”. Esqueceram-se as agruras do país, as guerras fratricidas dentro do principal partido da oposição, as “malfeitorias” de políticos e banqueiros, o triste espectáculo dos ataques intoleráveis, desferidos por figuras do PSD, contra o Tribunal Constitucional, ou o pedido de aclaração do acórdão contestado. Como era de prever, deixou de se falar da falta de timoneiro da nave desgovernada e sem rumo em que estamos embarcados. Aguardava-se, afinal, a esperada “vingança” deste pequeno país, através da arte dos seus futebolistas e dos remates certeiros desferidos numa bola redonda. E o país sonhou com estremecimento e esperança…
No entanto, decorridos cerca de quinze dias sobre o arranque do Mundial, tudo parece ter-se desmoronado: é que a nossa selecção está de malas aviadas para regressar, sem honra nem glória, a Portugal. Nada de surpreendente, para quem analisa o fenómeno desportivo com mais frieza e menos emoção! No que me diz respeito, contrariando a célebre frase segundo a qual “prognósticos só no fim do jogo”, arrisquei esta previsão na minha última crónica, escrita quando a equipa nacional ainda estagiava nos Estados Unidos. A euforia dos media e o entusiasmo popular não paravam de crescer, alimentados pelas vitórias alcançadas nos “amigáveis” contra o México e a Irlanda do Norte.
Mas este infeliz desfecho, agora à vista, no Mundial do Brasil (escrevo na véspera do jogo contra o Gana) era, de facto, previsível. De uma selecção presa por arames, fragilizada por sucessivas lesões, composta por jogadores fora de forma, muitos deles já “entrados” na idade, com a sua primeira figura bem distante do esplendor atlético e futebolístico que todos lhe reconhecemos, não era, racionalmente, de esperar coisa muito diferente. Com o nosso exagero tradicional, olhou-se para a selecção como um grupo de jogadores talentosos, experientes e bem orientados. Uma boa parte da comunicação social, liderada pelos jornalistas que, entusiasmados e patriotas, viajaram para o Brasil, não fez a coisa por menos: a selecção nacional era, sem sombra de dúvida, uma das grandes candidatas ao título mundial. Não foi difícil passar este desígnio “nacional” ao povo português, tão precisado de projectos de vitória que pudessem redimi-lo dos sacrifícios e humilhações do dia-a-dia.
Em suma, desvirtuou-se a realidade, esconderam-se as insuficiências manifestas do grupo de trabalho, pelo que a hora do acordar se tornou mais penosa. Foi o que sucedeu com a lamentável exibição e a derrota traumatizante no primeiro encontro disputado contra a Alemanha. O trauma trouxe à superfície a tradicional bipolaridade portuguesa. De “melhores do mundo” passámos a “pior equipa do Mundial”. De grandes “artistas”, virtuosos dos relvados, passámos a jogadores da “bola quadrada”, tristes figurantes de uma festa alheia. Os mesmos que, até ao dia do jogo com a Alemanha, incensavam a selecção, passaram a desferir violentos ataques que não pareciam deixar em pé pedra sobre pedra. Outros, que, do futebol apenas se interessam pela (baixa) intriga e pela insinuação reles, aproveitaram-se do mau resultado e da fraquíssima exibição para ajustarem contas antigas.
Mas logo voltou a esperança. Afinal tudo continuava a depender apenas de nós. Duas vitórias contra os EUA e o Gana, duas simples vitórias, colocavam-nos nos oitavos de final. Até os inimigos figadais do seleccionador se voltaram a calar, dando uma moratória oportunista à equipa nacional. Afinal de contas, não ficava muito bem, por não ser patriótico, que profissionais da imprensa desportiva agourassem tempestades quando o êxito ainda estava ao nosso alcance. Havia que aguardar mais uns dias, ansiando a maior parte pela recuperação redentora da celebrada selecção mas desejando uns poucos, lá bem no íntimo, o seu definitivo desabar. O veneno da vingança é, para alguns, tão saboroso e sedutor que se sobrepõe a eventuais sentimentos de amor à Bandeira.
Seguiu-se o empate quase milagroso com os EUA. Depois de termos entrado a ganhar com um golo de Nani aos cinco minutos, voltou a tornar-se evidente a deficiente condição da maior parte da equipa, tendo os americanos, fisicamente mais fortes e bem preparados, mas constituindo um conjunto apenas sofrível, conseguido dar a volta ao jogo, tendo-nos valido, para evitar nova derrota, o golo de Varela no último suspiro da partida, quando se completavam os cinco minutos de tempo adicional concedido pelo árbitro.
Voltaram as críticas quase sempre excessivas – sofridas, umas, destrutivas as outras. O arrebatamento voltou a dar lugar ao desespero e ao incontrolável desejo de vingança. Os jornalistas que tinham cantado loas à excelência do trabalho realizado no tempo do estágio e nos dias que antecederam o início da competição, transformaram-se, do dia para a noite, em críticos ferozes. Deixou de ser antipatriótico dizer mal da selecção, tendo passado a ser uma exigência ética e cívica encontrar culpados e reclamar a sua severa punição.
Mas subsiste ainda uma pequena réstia de esperança. A conjugação de resultados improváveis, com uma vitória folgada de Portugal sobre o Gana e uma derrota clara dos EUA às mãos da Alemanha, ainda poderiam colocar-nos nos oitavos de final. Nada que a razão julgue possível. Mas o coração de uns poucos continua a querer acreditar! E só por isso foi concedida mais uma pequena dilação de complacência à selecção e aos responsáveis técnicos e federativos. A trégua vai acabar amanhã pelas 19.00 horas, quando for certificado o óbito da nossa equipa no Mundial do Brasil. Será então a vez de “fartar vilanagem”!
Não sei bem porquê o panorama da selecção neste Campeonato do Mundo faz-me pensar no que se está a passar no Partido Socialista. Na verdade, de “vitória eleitoral em vitória eleitoral”, a actual direcção do PS e a oposição interna que contra ela se ergueu estão a conduzir o PS para um perigoso processo autofágico. Os incidentes que se têm sucedido, que culminaram nos insultos dirigidos a António Costa no termo da reunião da Comissão Nacional do Partido, em Ermesinde, são disso um triste prenúncio. Como salientou a Presidente do PS, Maria de Belém Roseira, “exige-se de todas e de todos o respeito e tolerância pelas diferentes visões, diversidades e perspectivas que integram o património do partido”.
No futebol, como na política, deverá haver respeito e dignidade tanto na vitória como na derrota!