O ataque pela Rússia à Ucrânia acaba de ter início. Será que as piores perspetivas estão em curso?

Depois do cerco pelas tropas russas às fronteiras da Ucrânia e das sucessivas proclamações de que não invadiria o território ucraniano, o ditador do Kremlin fez o que todos temiam e quase todos previam: atacou o país vizinho. Vladimir Putin terá entrado para a História pelas piores razões.
Se acreditarmos que a cada século cabe, na história dos povos, um louco ébrio de poder e domínio avassalador, depois de Napoleão Bonaparte no século XIX e de Adolfo Hitler no século XX, será que já encontrámos o do século XXI: Vladimir Putin? Na sequência da mobilização para as fronteiras ucranianas – a leste, com os territórios separatistas pró-russas de Donetsk e Luhansk, a sul com a Crimeia e a norte com a Bielorússia - e depois do corrupio das deslocações dos líderes ocidentais a caminho de Moscovo onde Putin se dignava recebê-los, qual monarca marcando as suas diferenças, alguns comentadores, mais ingénuos ou mais otimistas, acreditaram na palavra do ditador que governa a Federação russa, o qual se desdobrou em declarações afirmando que a Rússia não atacaria a vizinha Ucrânia. Isto apesar de todos os sinais e as informações dadas pelos serviços de informações mais bem apetrechados do Mundo dizerem o contrário. A Casa Branca chegou a anunciar o dia da invasão: 4ª feira, dia 16 de fevereiro. Não tendo ocorrido a invasão nessa data, embora as violações ao cessar-fogo nos territórios separatistas de, na região do Donbass (no leste da Ucrânia, de maioria russófila) tivessem sofrido um crescimento preocupante, as vozes que defendiam a não invasão sentiram-se legitimadas para criticar a “histeria” dos líderes ocidentais.
Esquecem ou não vislumbram o ponto fulcral do problema: a diferença real entre os regimes, crenças políticas e modos de vida dos dois mundos que se enfrentam, materializando-se naquele conflito em concreto: o Ocidente – Europa democrática/Estados Unidos – e o Oriente – Rússia e seus satélites. E por tal, o que significaria para a Rússia aceitar o livre arbítrio da Ucrânia na sua relação cobiçosa com o Ocidente. Como nota Teixeira Fernandes na sua crónica de hoje: “ […] a Rússia é necessariamente um Estado excepcional e diferente do Ocidente. A democracia liberal – tal como, por exemplo, a União Europeia a entende – implicaria aceitar a possibilidade de desagregação do Estado russo em componentes políticas mais pequenas, dada a sua diversidade de Estado-império com múltiplos povos e minorias.” (in PÚBLICO de 23.2.22, pág.7). E essa é uma impossibilidade absoluta para Putin!
Entretanto, os ucranianos comuns agastaram-se perante proclamações bélicas dos governantes estrangeiros; «Somos peças de xadrez, mas as nossas vidas são reais», titulou o semanário Expresso, de 18 do de fevereiro, pág.7.
Infelizmente, na segunda-feira, dia 21, Putin decidiu dar um passo em frente. Através de uma declaração muito dura para com a “Ucrânia moderna”, decidiu reconhecer a independência dos territórios separatistas de Donetsk e Luhansk, da região secessionista do Donbass, no leste do País, que afirmou serem “terras russas” genuínas. Situou a decisão num contexto histórico relatado ao jeito que lhe dava jeito e entendeu por bem explanar e num quadro jurídico-constitucional finalisticamente justificativo e, até, legitimante, na medida em que foi precedida por um pedido da DUMA, a câmara baixa do Parlamento russo, que aprovou um projeto de lei que pedia o reconhecimento da independência das auto-proclamadas Repúblicas separatistas no leste da Ucrânia. Logo após, e com a anuência óbvia dos líderes das mencionadas Repúblicas, assinou o diploma de independência dos territórios separatistas e determinou a deslocação para a Região de tropas russas estacionadas na fronteira. Tudo com a rapidez e a eficiência apenas possíveis num regime autoritário, caracterizado, ademais, pela concentração do poder nas mãos de um só homem, que planeou e tomou as decisões e lhes deu execução. Também aí as ditaduras se distinguem das democracias.
O déspota do Kremlin, de uma penada, rasgou os Acordos de Minsk, de 2014 e 2015, tão laboriosamente alcançados, enquanto, mais uma vez, responsabilizou a Ucrânia pelo exclusivo incumprimento desses acordos. A culpa é sempre dos outros…!
A nível nacional, anotou-se o apoio, que se lamenta, do PCP à decisão de Vladimir Putin; o PCP não hesitou em se posicionar do lado do ditador. O seu ódio visceral e acrítico aos EUA não lhe consentiu outra posição. E teve, aliás, o descaramento quase insultuoso para a nossa inteligência, de atribuir as culpas do acontecido não só ao “imperialismo” norte-americano e à NATO mas também à (pobre da) Ucrânia.
Os países ocidentais decidiram, violados que foram os Acordos e o Direito Internacional, aplicar sem perda de tempo um pacote de sanções contra a Rússia. Foi o que fizeram os EUA, a União Europeia e o Reino Unido. A Alemanha decidiu, suportando embora severos custos nacionais, suspender o gasoduto Nord Stream2, por certo, a medida mais efetiva entre todas as tomadas pelo menos nesta primeira fase. As tímidas medidas sancionatórias para já anunciadas visaram três alvos fundamentais: (a) os decisores políticos responsáveis pelo reconhecimento dos territórios separatistas; (b) aqueles que estejam ou venham a estar envolvidos na invasão da Ucrânia; (c) os Bancos que financiarem as operações bélicas da Rússia.
Entretanto, hoje, dia 24 de fevereiro, a Rússia, invocando o pedido recebido das Repúblicas acabadas de reconhecer, deu início à agressão armada. De nada serviram os pedidos de respeito pelo Direito Intencional ou o apelo do Secretário-Geral das Nações Unidas à consciência moral e aos princípios humanos do déspota de Moscovo. E de novo, na hora de desencadear o ataque, atribuiu culpas à Ucrânia. Lembrei-me da fábula de La Fontaine, “O Lobo e o Cordeiro” de que não resisto a respigar alguns breves excertos:
“De ardente sede obrigados, / foram ao mesmo ribeiro / a beber das águas frescas / um lobo mais um cordeiro”. “O lobo pôs-se da parte / de onde o regato nascia / o cordeiro mais abaixo, / na veia de água bebia”. “A fera que desavir-se / Co´a mansa rês desejava, / num tom severo e medonho / desta sorte lhe falava / «Por que motivos me turvas, a água que estou bebendo?»/ E o cordeirinho inocente assim respondeu, tremendo: “Qual seja a razão que tenhas de enfadar-te, não percebo! Tu não vês que de ti corre a mim esta água que bebo?”
A fábula prossegue com provocações grosseiras por parte do lobo, que o cordeiro foi tentando rebater. Mas a fera estava, desde o princípio, determinada a comer o pequeno animal. Por isso, sem piedade, e de todo indiferente à razão, decidiu atacar e dilacerar o cordeirinho. Acaba La Fontaine: “Esta fábula dá brados/ Contra aqueles insolentes/ Que por delitos fingidos/Oprimem os inocentes”.
Não é difícil aplicar a “moral” desta fábula à dramática situação que ora vivemos nem identificar quem são, neste enredo, o “Lobo” e o “Cordeiro”.
Lisboa, 24 de fevereiro de 2022