Gentes da Guarda


Nestes tempos pandémicos em que a vida nos lançou, todos nós já experienciámos alguma espécie de isolamento. Ou sofremos na pele a maldição do vírus, ou algum ser próximo o suportou. Ou tivemos alguém num lar ou num hospital que não pudemos visitar. Ou os filhos ausentes não puderam voltar para nos visitar em épocas festivas. Ou no emprego contactámos com amigos que sofreram a infecção do malfadado vírus. São, pois, tempos de isolamento físico, psicológico ou social.
E a poesia também está isolada? Felizmente não. Há poetas que continuam a escrever e a transpor para as palavras aquilo que vamos vivendo, não só no contacto com o vírus, mas acima de tudo com as consequências derivadas da sua disseminação. Chegou-me a casa, nos últimos dias de 2021, um livrinho de poemas de um autor nosso conterrâneo – Cristino Cortes - e que, apesar destes difíceis tempos, teima em publicar. São 18 poemas onde faz a representação do quotidiano de quem sofre alguma doença crónica, seguidos de 3 poemas sobre o feminino.
O poeta, com um olhar meditativo, vai-nos desfilando o dia a dia dum hipotético doente. Começando na consulta de rotina, no Centro de Saúde, reflecte a intimidade que se vai adquirindo com o nosso médico de família e até alguma indiferença por parte de alguns que mal olham para os doentes, este paciente desfia as queixas “constantes ou intermitentes do foro de diversos órgãos” (p.3) o que provoca no doutor alguma perplexidade. A consulta termina com a afirmação definitiva:
“Não exagere, diz ele. Calma e verá que tudo se trata
Tome mais isto e aquilo … Se o não curar também o não mata.” (p.3).
Leva-nos, depois, para os achaques da idade e das complicações que todos mais ou menos conhecemos dos nossos parentes. Ou de nós próprios, conforme a idade que tivermos. Fazem-se os exames receitados e ficamos ansiosos pela consulta onde o médico nos vai ler a sentença: será benigno ou desapiedado? Ou o exame, no hospital, onde ficamos expostos à bisbilhotice alheia do nosso físico, cheios de vergonha pois o exame tem de ser feito como viemos ao mundo. Afinal vem o veredicto e acaba por ser pena suspensa e adiamos a gravidade por mais uns tempos:
“Assim corresponda a alma, não falte o apetite, claro.
De fazer coisas sempre em poesia. Do resto nem sequer falo.” (p.7)
Conduz-nos, também, em visita ao hospital, onde encontramos sempre alguém que se não está como nós está ainda pior, mas gera-se uma onda solidária: estamos doentes, mas há mais alguém que nos faz companhia. Porém, a doença não ataca só o poeta: a esposa aparece com um pé inchado por isso há que ter paciência; a visita repetida como uma rotina à pessoa amada internada no hospital e que revela a ternura e a solidão sentida por quem está fora:
“Bem vejo, oh meu amor, como os dias te custam a passar
- E grande é a aspiração, e direito, de te ver voltar.” (p.12)
O isolamento agrava-se quando alguém contrai essa doença terrível que é o Alzheimer. O poeta fala-nos das consequências e ressalta precisamente esse distanciamento do doente que fica fechado no seu mundo prisioneiro de si mesmo, sem sabermos se há perceção da realidade ou não. “Como é triste, sem dúvida, assim coexistirmos / em duas realidades tão distintas, quase antagónicas / e ao mesmo tempo próximas e contemporâneas.” (p.13) E vai-nos relatando o alheamento, a indiferença, a inconsciência. A desgraça da vegetabilidade do ser humano levando ao sofrimento de quem os cuida e guia.
Avançamos para outra doença que é o cancro, metaforicamente designada por “flor do mal”. A intrusão paulatina, o minar sub-reptício da nossa saúde e o desfecho quase inevitável, a morte. A ambulância que se ouve na rua e que nos faz despertar para a realidade. Alguém é conduzido, mas fica a sensação de que um dia seremos nós os transportados. Ou seja, convertemo-nos, como diz o poeta, em débeis flores de estufa frágeis e não imunes à entrada no corpo de minúsculos vírus que nos vão transformando. E, agora, o poeta atualiza e traz-nos para os nossos dias, referindo explicitamente o corona-vírus sob o significativo título E tudo o vento levou. Em três poemas desfilam perante os nossos olhos as consequências daquilo que vivemos neste últimos anos: o impedimento de viajar (o sujeito poético teve de abdicar de uma viagem a Paris, o receio do prolongamento desta situação pandémica (o vago receio / de que este anormal tenha vindo para ficar), o afastamento das famílias, o teletrabalho, a interdição do contacto físico e emocional de que tanto precisamos:
“Sob protesto pois, vejo e me revolto face ao que em, mim ficou.
Foi o vírus, esse estúpido, que tudo para tão longe levou.” (p.25)
E a terminar o livrinho temos, então, um feminino tríptico final em que o autor muda o tom do discurso poético com três sonetos intitulados Feminino poema de mágoa e amor. O sujeito poético transmuta-se para uma voz feminina – à maneira das cantigas de amigo – que, afinal, foi ”aquela que um dia te disse que sim.” (p.27). As lembranças vêm ao de cima e pede que se lembre dela como era e de tudo o que viveram em conjunto e se ele a esquecer não haverá zangas nem ciúmes num amor doação:
“Ao esquecimento, que o há-de haver, junto o meu sorriso:
Nada jamais eu te cobraria … e não faço qualquer juízo. (p28)
Há, nestes últimos poemas, resquícios do Ricardo Reis e das suas odes epicuristas e estóicas. Ao lermos o primeiro verso do segundo soneto, vem-nos à mente a ode à Lídia: “ao menos se eu for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois”. E, claro, a efemeridade do que é humano também é realçado nestes poemas finais. Assim como o papel da lembrança cujo paralelo verbal aparece repetido no dístico final. Também a pouca importância a atribuir a essas lembranças e assim ficamos imersos, nós próprios, nesta vida efémera e passageira que nos vai levando as pessoas queridas e nos deixa ao sabor do momento deixando implícito que o carpe diem horaciano não é despiciendo:
“Lembra-te de mim se disso naturalmente te lembrares.
Se esqueceres não faz mal, importa é a vida escutares. (p.29)
Nota: todos os versos citados são do livro editado em 2021, pelo poeta Cristino Cortes, 18 poemas de Hospital seguidos de um feminino tríptico final, Apenas livros, Lisboa