Não costumo ficar satisfeito com as campanhas eleitorais

. Necessárias, mas sempre mais que imperfeitas, mais do que limitadas. Imperfeitas e limitadas serão sempre, como limitado e imperfeito é o ser humano. Mas também elas poderiam ser menos imperfeitas e menos limitadas, se da parte dos protagonistas se evidenciasse melhor que a vontade de poder não se sobrepõe à vontade de servir. Tal seria numa democracia adulta e robusta. Na nossa terra e certamente noutras, porém, isso parece que continua a ser um utopismo de ingénuos.
Não posso ser de todo pessimista, porque, sobretudo na fase dos debates televisivos, houve momentos de algum esclarecimento, mas, de modo geral, os intervenientes não conseguiam disfarçar o jogo de poder. E sempre, ou quase sempre, lá vinha a bandeira da dicotomia e dualismo bacoco esquerda-direita. E tanto este dualismo foi embandeirado, por políticos, jornalistas e comentadores, que o cidadão parece ter ficado enfeitiçado por ele. É verdade que houve um leque bem aberto de propostas partidárias, mas tudo se foi esfumando naquela polarização simplista de oposições primárias.
Todos o sabemos, e já é um lugar comum dizê-lo, que nos encontramos num “mundo incerto”. E, num mundo incerto, o lógico seria incentivar o pensamento. Mesmo, ou sobretudo, em campanhas eleitorais. Mas, num mundo incerto, o ser humano é tentado a instalar-se num lugar julgado seguro de dicotomias grosseiras. A dicotomia esquerda-direita tem sido uma delas. Poderá dar muito jeito ao comum cidadão, mas mais jeito poderá dar a quem iça bandeiras de conquista ou manutenção do poder.
Tenho horror a estas dicotomias políticas centradas na dicotomia esquerda-direita por tudo e por nada. Elas empobrecem o pensamento. Eliminam o indeterminado, a complexidade do real que é bem mais rico do que o pintamos com nomes rígidos e fixos.
Pensar é característica constitutiva do ser humano. Pensar, porém, dá trabalho. É mais cómodo não pensar. É mais cómodo pensar os pensamentos dos outros, sobretudo quando eles se apresentam em dicotomias que fogem de meios termos e das nuances que escapam aos extremos dicotómicos. Será sempre mais prático para os seres humanos deixarem-se enfeitiçar por doutrinas que, com fórmulas e receitas, se apresentam atractivamente numa espécie de mercado de soluções feitas. Essas doutrinas serão tanto mais atractivas quanto mais segurança imediata parecem trazer à incerteza sentida na complexidade do mundo em que nos situamos.
Sempre estranhei que, com tanta frequência, no final de um debate a dois como foram os que antecederam os tempos de campanha, o moderador começasse por perguntar aos comentadores quem teria ganho o debate. Ganhar-perder, como num jogo imaginário onde não pode haver empates, que logo descambava para a dicotomia esquerda-direita. É a tendência de excluir tonalidades, é esquecer a cabeça que se situa entre a mão esquerda e a mão direita, ou o espaço para além das mãos. E tudo ganha maior gravidade se à dicotomia esquerda-direita lhe associarmos os valores éticos, sociais ou culturais, ou seja, se a conjugarmos com a bondade das coisas e dos comportamentos humanos.
No início dos meus estudos, só me foi oferecido a lógica formal clássica. Os valores lógicos enunciados eram a verdade e a falsidade. Uma proposição ou era verdadeira ou era falsa. Entre o verdadeiro e o falso não haveria meio termo. E lá estavam os chamados princípios lógicos a cimentar estes valores. Desde que se definissem claramente os conceitos, não haveria outros valores lógicos para além da verdade e da falsidade. E de facto parece não haver, se nos colocarmos num mundo metafísico ou sobre-humano em que tudo é claro e distinto. Mas o mundo humano em que vivemos está bem longe da clareza e distinção assim exigida.
Depois fui despertando para outras lógicas com novas adjectivações: lógica modal, lógica difusa, discreta, deôntica – domínio do dever -, doxástica – domínio da opinião - e até lógica temporal. Poderá tratar-se de alguns nomes estranhos para muito gente, mas a realidade significada faz parte da experiência diária de todos. A “necessidade”, a “eventualidade”, a “probabilidade” e a “possibilidade” são modalidades que todos nós conhecemos e delas muito se fala normalmente em tempos de eleições. E as sondagens aí estão a evidenciá-lo. Limitado nas suas faculdades cognoscitivas, estas lógicas pretendem dissecar o raciocínio humano em que o valor “verdade” se situa muitas vezes entre o completamente verdadeiro e o completamente falso. É, digamos, a bem conhecida lógica do pensar o copo: entre o completamente cheio e o completamente vazio, há infindos estados intermédios. Mas parece haver sempre quem só saiba pensar o copo cheio ou o copo vazio.
Já se está a ver por que razão não aprecio especialmente esta dicotomia que se instalou no campo político tão apreciada por alguns grupos, particularmente aqueles que se dizem “de esquerda” que tanto a usam que até parece que a verdade se encontra inteirinha do seu lado. Mas creio que a problemática não se encontra só aí. O problema maior, talvez, estará no facto de estes mensageiros limitarem o pensamento do ser humano. Limitam o pensamento próprio quando assim se apresentam com dogmática rigidez e limitam o pensamento de quem assim os ouve e se deixa enfeitiçar pela luz de tais faroleiros. Limitam ainda o pensamento porque o enquistamento num extremo da dicotomia facilmente alimenta o outro extremo que poderá surgir aos olhos de muitos como escudo salvador contra as pretensões do primeiro. É o mal da lógica dual. A lógica de um pensamento extremo, com pretensões de único verdadeiro, é o melhor terreno para o desenvolvimento de uma lógica modal oposta do outro extremo. Está então a porta aberta para a cegueira: situados em posições extremas que facilmente roçam o fanatismo, nem sequer se dão conta de que este dualismo é de tal modo grosseiro que oculta as zonas intermédias, as tonalidades virtuais das realidades humanas, talvez as mais ricas e promissoras. O fanatismo, sempre sedento de poder e de glória, bem pode medrar a céu aberto, ali onde os extremismos mutuamente se alimentam.
«A virtude está no meio termo.» Assim dizia o velho Aristóteles. E não será difícil concordar com ele. O problema estará em saber qual é o meio termo, quem o pode determinar e com que critérios ele é determinado.
E assim reencontramos a dúvida, a indeterminação que podem gerar desconforto. Mas é aí também que encontramos a liberdade, esse ideal difícil de conceber e bem mais difícil de realizar. Quem tem medo da liberdade refugiar-se-á nas posições extremas ou nas posições mais faladas e influentes do momento. A esses darão muito jeito as dicotomias que se escondem na dicotomia mais badalada dos tempos presentes: a dicotomia esquerda-direita. Mas quem assume positivamente a liberdade sabe que tem nas mãos a própria vida. E isso implica pensar e assumir a responsabilidade. Por isso me ocorrem as palavras do filósofo T. W. Adorno no século passado: “Liberdade não é poder escolher entre preto e branco, mas sim abominar este tipo de propostas de escolha.” A vivência democrática passa por aqui.
Guarda, 4 de Fevereiro de 2022