Encontramo-nos em guerra. Outra guerra. Terrível guerra! Começou no dia 24 de Fevereiro. Foi há quase um mês. Triste dia. Tristes dias. Triste mês. Ele já está gravado na história trágica deste século, que é nosso.


Um estado soberano é invadido ignóbil e cobardemente por um exército a mando de um homem em que parecem conjugar-se, na perfeição e no pior que possuem, o imperialismo czarista, o internacionalismo comunista e o secretismo traiçoeiro do KGB. Pobre direito internacional, que perdeu a força. Pobres direitos humanos, que perderam a dignidade e o fundamento. Pobre Europa, que perdeu a virtude das suas raízes. Pobre mundo, que não consegue a paz.
Não sei falar de guerra. Aliás, nada percebo de guerra. Não vou, pois, falar de guerra. Mesmo que entendesse alguma coisa de guerra, não falaria de guerra. A guerra tem estado todos os dias nos nossos meios de comunicação social. Imagens de terror têm entrado diariamente, e a todas as horas, nas nossas casas. A guerra em directo. Tão terríveis e tão horrorosas imagens! Imagens de incrível barbárie. Imagens de desumanidade. Imagens assim não são só imagens. São realidade cruel. São a realidade do mal. Algo vai muito mal no mundo quando a loucura de um homem pode provocar tamanha crueldade. Parece ser o fracasso absoluto do ser humano. Parece ter-se eclipsado a humanidade do homem. Porque não é só a Ucrânia que está em causa. Nem só a Europa. Nem só o Ocidente. É a Humanidade. Somos todos nós, humanos, e os valores de que fomos tomando consciência ao longo da História.
O P. António Vieira, num célebre texto, depois de ter chamado à guerra «monstro» que tudo consome e nunca se farta e «tempestade terrestre» que tudo devasta, escreve: «É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro.» E conclui: e «até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro».
O texto de orador sacro é bem conhecido, mas, para além da sua dimensão literária, nem sempre meditado. E, muito menos, terá sido pensado no contexto da actualidade em que se conjuga a globalização com as modernas tecnologias da guerra.
Com a guerra, umas palavras tremem, outras engasgam-se na garganta e outras perdem significado. E, quando as palavras tremem e perdem significado, surgem, imparáveis, torrentes de soluços nos rostos. E, se os olhos secam, falam, silenciosas, as lágrimas do coração. Dos corações apertados. Dos corações divididos. Pela guerra.
Era uma vez, assim reza a mitologia grega, uma jovem ninfa chamada Clítia que vivia apaixonada por Hélio, o Deus Sol. Passava Clítia os dias a olhar para o Sol sempre que a sua carruagem de fogo atravessava os céus. Parecia até que as suas viagens diárias eram uma dança de sedução. Dia para dia crescia a paixão por Hélio. Mas, um dia, a esperança deu lugar à desilusão. Hélio abandonou-a e escolheu ficar com Leucoteia. Amargurada e chorosa, Clítia foi para o campo onde, sentada no chão, sem comer nem beber, passou a alimentar-se das próprias lágrimas. Durante o dia não desviava os olhos do Sol e, de noite, inclinava o rosto para o chão. Chorava a própria solidão. Enfraquecido e mirrado, o seu corpo foi-se transformando numa haste fina. Os pés criaram raízes na terra regada de lágrimas. O rosto transformou-se-lhe numa flor dourada. A ninfa, transmutada assim em flor, dia após dia, continuou a seguir o Sol. Foi o primeiro girassol do mundo.
Há dias semeei girassóis no meu jardim. E isto não será notícia. Tanta gente semeia girassóis no jardim. Não será notícia nos meios de comunicação de massas, televisões, rádios ou jornais de grande difusão, mas sê-lo-á no campo da simbólica da vida. É ele que dá ânimo ao espírito quando parecem sucumbir as forças físicas, como elas foram faltando a Clítia do mito grego. Foi, porém, a sua fraqueza que a transformou em força de vida para uma linda flor. Amarela. É a simbólica em explosão.
A vida humana vai-se alimentando de símbolos. E a simbólica da vida é o núcleo central da própria vida. Será por isso que ela cria os mitos, como cria arte e filosofia. Terá sido por isso que Van Gogh pintou tantos quadros com girassóis. Serão 11 os quadros do pintor em que os girassóis são o tema principal. A estes se juntarão muitos outros onde esta flor desempenha também importante papel.
Semeei girassóis no jardim, enquanto na Ucrânia se semeavam bombas. Terra martirizada pela guerra. Terra regada de lágrimas e sangue. E de fumo que pinta de negro o céu azul e cobre de chumbo o amarelo do Sol. Do azul e do amarelo de uma bandeira que se transformou numa espécie de símbolo de um mundo que quer a liberdade e a paz. E por ela luta. Com a fortaleza dos humildes. Com glória!
A cena correu mundo e teve, como li algures, muitos milhões de visualizações nas redes sociais. E não é para menos. Era uma praça do porto de Henichesk, na Ucrânia. Uns soldados armados dizem que tinham entrado ali num exercício de treino. Russos. Uma mulher dirige-se a um deles. Ucraniana. E as suas palavras corajosas cruzam-se com o ar comprometido do soldado armado que a pretende despachar. Chamando-lhes “ocupantes”, “fascistas”, “inimigos” e “amaldiçoados”, acompanhadas de sonantes palavões, oferece-lhe sementes de girassol, com estas palavras: «Tome estas sementes e mete-as nos bolsos, para que, ao menos, elas germinem e os girassóis cresçam quando todos vocês aqui morrerem e apodrecerem na nossa terra.» Custou-lhe a ler? Também a mim. E mais ainda me custou a escrever. Mas preveni. Na guerra também as palavras tremem e se colam à garganta. E eu tremo com elas. Os girassóis não podem alimentar-se de sangue vermelho.
Não vou escrever sobre a guerra, mesmo que ela se encontre à nossa porta. Vou à procura do Bem, mesmo que ele ande à mistura com a crueldade da guerra. Vou à procura do Bem, do que acredito ser o Bem. Porque anda por aí, o Bem. Assim o creio. E assim o vejo. Ele anda por aí, qual girassol de Clítia, sempre de olhos postos no Sol da vida. O génio artístico de Van Gogh espalhou-se com o vento do espírito, transformado em arte da vida no meio das atrocidades da guerra. E o girassol é o Bem em difusão. O girassol é uma multidão. O girassol são girassóis.
O azul e o amarelo ganharam nova beleza. O azul do céu e o amarelo dos girassóis. São eles a beleza da luta pela liberdade. Pela paz. Pela vida. Pela Humanidade.
Há girassóis a abrir no coração daquelas mães – e são tantas – que deixaram os maridos no solo pátrio e caminham com os filhos para um país estrangeiro onde, numa gare ferroviária qualquer, outras mães – girassóis de acolhimento – deixaram carrinhos de mão para refúgio dos seus bebés.
Há girassóis a germinar, muitos, na imensa solidariedade feita de abraços que provêm de todos os cantos do mundo. Há girassóis, em cada camião – tantos que são - a caminho de uma qualquer fronteira, carregado com muitos girassóis de solidariedade que vão de cá, de lá, do além, de tantos lares. Há girassóis em cada voluntário – tantos que são – que oferece o tempo de vida em tantos serviços de apoio a quantos – tantos que são – a guerra obrigou a deixarem a paz tranquila do seu país.
Há girassóis. Tantos girassóis. Girassóis da criatividade ao serviço do Bem. Ele anda por aí, embora ensombrado pelas torpezas humanas… da guerra. Ele anda por aí, o Bem, silencioso e humilde como a própria humildade, forte como a própria fortaleza e frutuoso como a mais excelsa das virtudes. Como a semente de girassol.
Há um girassol a nascer naquele violinista solitário a tocar numa praça deserta, como há um girassol a florir naquele outro que toca na escuridão de um bunker cheio de gente. Há girassóis naquela orquestra o tocar na Praça da Independência de Kiev, como há girassóis a abrir na voz de Amélia Anisovych, de 7 anos, a cantar, num abrigo da capital, a música “Let it go” (“já passou”) do filme Frozen. Ela emocionou os refugiados presentes e encantou o mundo inteiro.
Há girassóis nascidos em todos os corações que rezam. Coração de um homem só abraçado a uma grande cruz erguida numa praça da cidade; corações infantis no espaço escuro de um abrigo; corações de homens, de joelhos e terço na mão, numa avenida da capital; corações de quantos ajoelham, nas margens da rua, à passagem de um veículo que transporta o Santíssimo da catedral de Kiev para o sacrário de um bunker.
Há girassóis abertos no campo dos crentes ucranianos que recebem, em oração cantada e fé dorida, a imagem da Peregrina Senhora de Fátima na cidade de Lviv.
Como quem abraça a Ucrânia e com a virtude da esperança, visito todos os dias a minha sementeira. As sementes de girassol que semeei no jardim ainda não germinaram, mas hão-de germinar. Creio que elas despontarão da terra húmida quando despontar também a paz no país dos girassóis.
Paz à Ucrânia. Paz à Europa. Paz ao mundo.
Guarda, 17 de Março de 2022