1 - Quem acompanhou e se lembra das guerras contra a Chechénia e na Síria,

planeadas e executadas sob as ordens de Vladimir Putin, não estranhará decerto o grau de devastação e de violência que a guerra contra a Ucrânia tem vindo a registar. Quem não se recorda da inimaginável destruição de Grozny, a capital da Chechénia ou de Alepo, na Síria? Pensava-se talvez que a guerra contra a Ucrânia, por eclodir em plena Europa, às portas da Rússia e contra um povo eslavo tantas vezes apodado de “povo-irmão”, poderia ver limitado o âmbito e a violência duma invasão ou de quaisquer outras operações bélicas.
Pura ilusão! O potencial bélico da Rússia oportunamente deslocado para as fronteiras com a Ucrânia foi dimensionado para destruir alvos militares mas também civis, reduzindo a zero as cidades da Ucrânia. Putin é, tudo o indicia, um predador impiedoso que nada nem ninguém – nem argumentos racionais nem apelos humanitários – será capaz de deter. É neste contexto, que, sob a liderança de um ditador, imperialista e louco, a invasão da Ucrânia assume reais contornos de ocupação global. Os ataques, desencadeados pelo Norte, a partir da Bielorússia (do aliado Lukaschenko) a começar pela ocupação da central desativada de Chernobyl e tendo como objetivo essencial o cerco e a rendição da capital Kiev, foram secundados por outros tantos a Leste e a Sul. Visavam estes, ao que se proclamou, a “defesa” das “Repúblicas” secessionistas pró-russas, proclamadas independentes, de Donetsk e Luhansk, no Donbass, mas também, guinando a noroeste, o ataque, efetuado com inaudita violência e enormes estragos à segunda cidade mais importante da Ucrânia, Karkhiv. Tudo isto complementado com os bombardeamentos de outros alvos estratégicos – aeroportos, centrais nucleares, instalações de pesquisa nuclear, cidades portuárias – como, imperdoavelmente, hospitais, maternidades, edifícios residenciais habitados por civis. Geraram-se assim vagas de centenas de milhares de refugiados, na sua grande maioria mulheres e crianças, numa fuga desesperada para países a ocidente – Polónia, Roménia, Moldávia. Hungria, Eslováquia – em números que excedem, à data deste artigo, os dois milhões. Uma tragédia humanitária de dimensões incomensuráveis!
Apesar de acordados pelas partes beligerantes alguns corredores humanitários, com cessar-fogo a horas determinadas para permitir a saída dos refugiados, têm-se sucedido as violações desses acordos pelos invasores, tendo as tropas russas atacado, no dia 8 de março, um comboio humanitário para Mariupol, uma das cidades mais martirizadas pelo agressor, no intuito de impedir o acesso ao mar por parte dos ucranianos.
Com o que Putin não contava foi com a heroica resistência das Forças Armadas da Ucrânia e do seu Povo, nem com a exemplar capacidade de liderança do seu Presidente, Vlodomyr Zelenski, que tem vindo a dar provas diárias de uma grande capacidade de comunicação, a par de uma enorme e contagiante coragem. Putin foi também seguramente surpreendido pela unidade da Europa e pela solidariedade transatlântica, dos Estados Unidos e do Canadá, bem como do Reino Unido e dos Estados da União Europeia, todos unidos numa resposta sancionatória face ao martírio ucraniano. Só isso explica as ameaças à Suécia e à Finlândia e a colocação de armas do seu arsenal nuclear em alerta máxima. Ao fazê-lo, revelou-se um homem sem escrúpulos, um líder perigoso sem peias nem limites, sem comiserações nem remorsos, capaz de todos os crimes de guerra e de genocídio, contra a humanidade e contra a própria alma dos povos.
Quer isto dizer que a Rússia perdeu a guerra? Infelizmente, não. Mas perdeu a paz.
Em face da abissal diferença de forças militares, a Rússia acabará, com muita probabilidade, por ganhar esta guerra. Mas perdeu a honra e tornou-se num Estado-pária!

2 – Um dos acontecimentos mais preocupantes nesta escalada da guerra contra a Ucrânia passou-se em redor da central nuclear de Zaporízia (situada perto da cidade de Kerson, tomada pelos russos na véspera deste grave incidente), a mais importante central nuclear da Ucrânia e a maior (ou a segunda maior) da Europa. Os disparos efetuados e o incêndio que deflagrou na proximidade acordou em todos nós o pesadelo da destruição nuclear da Europa. Felizmente, o incêndio deflagrou na proximidade de um reator nuclear (dos seis existentes em Zaporízia) mas não o atingiu nem afetou. É, no entanto, mais uma vez o fantasma do “nuclear “…
A Ucrânia foi uma potência nuclear até 1994, com arsenal herdado da URSS. Mas, em troca do reconhecimento da sua integridade territorial por parte dos EUA, da Rússia e do Reino Unido, constante do Memorando de Budapeste, a Ucrânia formalizou a cedência à Rússia desse armamento. Daí o cenário dúbio e de fragilíssimos contornos que envolve a presença do “nuclear” em solo ucraniano. E ainda mais: o que pensa Putin quanto à Moldávia – a mais ameaçada -, à Geórgia (país que acaba de apresentar o pedido de adesão à U.E.), se já começou a ameaçar a Finlândia (que, com a Suécia, se apresenta como candidata para se tornar membro da NATO)?
Entretanto – honra lhe seja! – a União Europeia abriu os olhos e, sob o impacto desta guerra e com o reconhecimento do perigo constituído por Putin, alterou a sua visão no domínio da defesa. Bastará ver a radical modificação ocorrida na Alemanha, onde foi substancialmente alargado o orçamento para a defesa.
Emmanuel Macron, que tem mantido conversas telefónicas longas e frequentes com Putin, disse há dias, depois de um desses diálogos, que “o pior ainda estava para vir”! (Esperemos que também esteja para vir o dia em que Putin seja levado a prestar contas perante o Tribunal Penal Internacional ou perante o Tribunal Internacional de Justiça, ambos com sede na Haia).
Clara Ferreira Alves parece concordar com Macron quando escreve: “A guerra poderá ser longa e sangrenta e a Europa sofrerá. Sofrerá muito, na cauda da pandemia”. (…) “Estamos em guerra com um homem que é capaz de tudo. Poderia ter sido evitada? Talvez sim, talvez não. E não estamos preparados. O que sabemos é que Putin cometeu um erro maior. É tempo de jogar para o xeque-mate” (crónica no número da Revista do EXPRESSO, de 4 de março de 2022).
Entretanto, a Ucrânia está entregue, manu militari, a si própria. Não faltam, solidariedade e compreensão, mas a NATO não pode entrar em território da Ucrânia nem decretar uma zona de exclusão aérea sobre o seu território. Esperemos que a resistência ucraniana consiga o milagre de “ganhar” tempo que permita uma mediação diplomática bem sucedida. Ou então – melhor ainda – que, internamente, na Rússia, numa hora de coragem, os militares/patriotas ponham fim, a partir de dentro, ao reinado do ditador.
Lisboa, 9 de março de 2022