Histórias que a Vida Conta

Talvez que o Natal e as suas iguarias se me “tenha afeito à boca”, mas o que é certo é que, agora que a festa acabou, a boca me “sabe a ferro-velho”, “a papel de música” ou seja “a pouco”. É assim como se tivessem tirado o molho ao bife “à Marrare” ou a calda de açúcar às trouxas de ovos.Porque eu, que aliás não sou propriamente um “bom garfo”, acho, porém, que nestas coisas da comida, como no geral nas do prazer, os acabamentos, os toques finais, são verdadeiramente a “cereja no bolo”, o ponto mais alto e doce do desejo satisfeito. Desejo e pecado correspondente: o reiteradíssimo da gula que, como bom pecado que se preza, dificilmente se dá por satisfeito. Que em matéria de cozinhados, os tempos vão finíssimos. Há a nouvelle cuisine e fala-se em “cozinha de autor”. Já não se diz “saborear” mas “degustar” - e isto com tal minúcia, unção e, por tal, parcimónia na dose, que se fica literalmente no “comer e chorar por mais”!Confesso que me regozijo com o que diz um expert numa rubrica da especialidade referindo esta feição da culinária: “o pecado maior é alguma afectação, um arrevesamento, uma falta de simplicidade que leva a misturas que parecem despropositadas” – a chamada cozinha fusion, uma tecnoculinária que se (d)escreve assim: risotto verde com ceviche de lagostins e emulsão de caril, adornado de espuma branca (uma emulsão feita ao que parece com lecitina de soja); carpaccio de carne com pesto e de bacalhau com tapenade e tomate confitado; foie gras com compota de figo e canela, salmão marinado sob salada verde e molho gribiche… (?!!!)Mas tanta sofisticação gustativa não é só de agora: lembra-me o Eça de “A Cidade e as Serras” e o célebre arroz doce travesti:(Jacinto), percorrendo a lâmina de marfim onde no 202 se escreviam os pratos a lápis vermelho, louvou com fervor a ideia patriarcal:- Arroz-doce! Está escrito com dois “ss”, mas não tem dúvida… Excelente lembrança! Há que tempos não como arroz-doce! Desde a morte da avó.Mas quando o arroz apareceu triunfalmente, que vexame! Era um prato monumental, de grande arte! O arroz, maciço, moldado em forma de pirâmide do Egipto, emergia de uma calda de cereja, e desaparecia sob os frutos secos que o revestiam até ao cimo, onde se equilibrava uma coroa de Conde feita de chocolate e gomos de tangerina gelada! E as iniciais, a data, tão lindas e graves na canela ingénua, vinham traçadas nas bordas da travessa com violetas pralinadas! Repelimos, num mudo horror, o prato acanalhado. E Jacinto, erguendo o copo de champanhe, murmurou como num funeral pagão:- “Ad manes”, aos nossos mortos!”Porém, mais adiante, Eça emendou a mão e, já em Tormes, simplificou a ementa. E surpreendemos um Jacinto amesendado, mas muito desconfiado, vivendo uma aventura gastronómica altamente redentora: (…) provou o caldo que era de galinha e rescendia. Provou – e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: “Está bom!”Estava precioso: tinha fígado e tinha moela; o seu perfume enternecia; três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.E mais adiante: Sobre a mesa uma travessa e transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominara favas! Tentou todavia uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala.Porque cozinhar tem algo de religioso: juntam-se uns quantos ingredientes, alguns gestos precisos e meio rituais, um fogo domesticado e amigo, um tempo sábio, uma inspiração feliz – e é a festa. Mais ou menos secreta, mais ou menos discreta, solitária ou em companhia (relembremos que “companheiro” vem do latim cum-panarius, “o que partilha o mesmo pão”). Comer, para além de ser um acto de vivência primordial, é o mais antigo, eficaz e saboroso exercício de con-vivência do Mundo. Há milhares de páginas escritas a propósito. Eis uma “pitada” delas colhida no José Eduardo Agualusa, em “Um Estranho em Goa”:[Ele]serviu-me primeiro um caloroso muzonguê, caldo de peixe cuja fama de devolver a lucidez aos ébrios mais tenazes, quando não de regenerar defuntos, o tornou muito popular na culinária luandense. Queixou-se de não dispor em Goa do terrível jindungo cahombo, malagueta perfumada, muito agressiva, principal responsável pelo abençoado ardor do muzonguê. A seguir deu-me a provar o famoso sarapatel, prato que se acredita descender em linha directa do sarrabulho lusitano. Pode ser que sim. No sarapatel a carne de porco apura ao lume denso do molho de masala – um urdume de ferozes especiarias, jindungo, cravo-da-índia, pimenta, cominho, canela, tudo isto e mais alguns mistérios, moído em vinagre – suavizado, apenas quanto baste pela doçura acre da polpa de tamarindo. É um prato a um tempo infernal e paradisíaco. Comi, sem poupar o vinho, um amável mas vigoroso Barca Velha, de 1982, com tal apetite que no fim, exausto, num estado de inefável felicidade, me achava capaz de perdoar qualquer ofensa, passada ou futura.Porque comer, meus amigos, é vital mas é também (ou deve ser), virtuoso. Ou seja, não só saber bem, mas fazer bem (se possível as duas coisas ao mesmo tempo). E é aqui que entramos no universo das Dietas. E há delas para tudo e o seu contrário de tal jeito que, pelas diversas seduções que delas saem vitoriosas, se diz que “pela boca morre o peixe”…!Mas precisamente para não morrer e viver mais, aí temos uma eleita “Património imaterial da Humanidade”: a Dieta Mediterrânica, reconhecida pela UNESCO como “de valor universal excecional […] transmitido de geração em geração, constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interação com a natureza e da sua história, incutindo-lhes um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo desse modo , para a promoção de respeito pela diversidade cultural e pela criatividade humana”. Consiste ela (temos nós, portugueses, obrigação de o saber) numa gestão alimentar de base preferencialmente vegetal de produtos frescos, sazonais e locais, dando primazia ao peixe e às combinações hortícolas e frutícolas de produção ecológica, reutilizando as sobras e prosseguindo em tudo um ideal de sustentabilidade ambiental.1 No entanto, “tal padrão alimentar exige conhecimento técnico e tempo para comprar, cozinhar e estar à mesa, obriga à compra de produtos frescos e menos transformados,[…] e obriga ainda a uma distribuição mais equitativa da atividade doméstica para ambos os membros do casal.[…] Este modelo alimentar, que nos protege e ao planeta e que era popular e acessível nos anos 60 e 70 do século passado, corre hoje [porém] o risco de se tornar gourmet, elitista e de acesso facilitado [apenas]a quem tem mais poder económico”.“Espécie” em vias de extinção? Não creio. Existe nela uma frescura, uma autenticidade, um apelo tão forte à magia caseira dos sabores que nos estão próximos, que a dieta mediterrânica se reinventará se for preciso com novos alimentos e condimentos a seu preceito, mas não deixará de ser sempre o nosso saudável, apetecido e apetitoso Bom Proveito!Lisboa, 15 de Janeiro de 2020
(Footnotes)1 Sigo aqui o artigo de Pedro Graça “Dieta mediterrânica – uma espécie em vias de extinção?” no PÚBLICO de 15 de Janeiro último.