Gentes da Guarda


Publicar livros de poesia na sociedade actual é um acto de coragem literária ou económica. Deixemos de lado a segunda hipótese e pensemos que a primeira prevalece, na maioria das opiniões. Falar de anjos também é corajoso nesta sociedade dominada pelo materialismo financeiro que não se compadece com sentimentos, nem com vidas. Há, pois, que louvar a coragem de Emília Barbeira, em vir falar-nos de anjos e anjas e atrever-se a pôr em palavras poéticas parte da sua experiência docente. De louvar ainda a filantropia associada à publicação da obra.
Tenho de começar por referir que sou suspeito em relação àquilo que possa escrever sobre o assunto / livro visto que conheço a Professora Emília desde o início da sua carreira profissional e, logo nessa altura, se revelou uma pessoa voluntariosa e preocupada com as pedagogias mais consentâneas com o ensino do Português aos seus alunos. Também tenho acompanhado o seu percurso de escrita que faz o favor de partilhar comigo e já, por mais de uma vez, a incentivei a publicar.
O livro, agora em “exibição” pública, é produto, como a autora afirmou na sessão de apresentação, de vários anos de contacto assíduo com os poetas do(s) programa(s) de Português e, quase de certeza, com outros que as horas vagas lhe proporcionam. São visíveis as marcas de influência de vários poetas nas palavras e na maneira de as empregar da autora. Ao percorrermos as letras do alfabeto vamos encontrando semelhanças com alguns poetas estudados nas aulas ou, ao menos, o seu nome é evocado. Assim, entre o poema Abrilada e ZZZZZ lemos uma série de textos poéticos ou quase-poéticos em que a autora vai refletindo ou brincando a sério. O lado lúdico da poesia revela-se nalguns poemas em que se procuram rimas naïfs / ingénuas para tentar objetivos concretos em termos de ensino / aprendizagem. E, claro, embora de maneira discreta, a nossa cidade também vai aparecendo dissimulada ao longo do livro.
Mas vamos por partes. Ou seja, pelos poemas. Seria de esperar que a letra A tivesse um poema dedicado ao aluno. E assim é. Cheio de metáforas que referem as várias facetas da aprendizagem: é rio de conhecimento, mas também ele é um poeta em botão, assim como um actor. E nestas 3 metáforas a autora explica em verso a essência da Escola. (p.6) Depois, na letra B, o destaque será inevitavelmente para a Biblioteca que “é a casa mais bem organizada” e onde cabem todos sem distinção para poderem usufruir do saber e de “sábias lições”(pp. 8 e 9). E o primeiro mestre vem na letra C com dois poemas dedicados a Camões quer na sua componente lírica, quer no poma épico. “Era uma vez … / Um ilustre poeta português / Que, realmente, muito fez / Pelo nosso admirável país / O seu nome próprio é Luís.” (p.10) Após os Dedos e o Diário, aparece a omnipresente Escola que “é um campo de batalha ou um interminável quartel.”, onde há soldados, pois então, e alguns de chumbo que permitem sonhar e esquecer a terrível e destruidora guerra. Com um capitão que faz a união e cuja competência é que, sendo todos diferentes, cigarras ou formigas, construam um mundo melhor. Claro que a seguir vem a cidade: Guarda. De D. Sancho, da Ribeirinha, das cantigas de amigo (mesmo não sendo nossa, mas dirá outro poeta, o mito é o nada que é tudo, por isso ela será nossa porque nós assim queremos). Na letra seguinte, o H, aparece um poema dos mais belos e expressivos do livro porque fala do Hoje e da aldeia e da sua desertificação. Mas, aí, a memória continua a vivificar os que moraram naquelas casas. (p.18). E falar da Guarda, sem falar do Inverno, seria pecado grave, embora no poema surja respeitável (delicadezas da autora!). E, no centro do livro, não poderia haver outra aparição que não fosse o próprio LIVRO com três poemas que lhe são dedicados. (Um parêntesis para referir que, de facto, é mesmo o centro, não sei se foi de propósito, mas o livro tem 48 páginas e, na 24, surge o primeiro poema com esse título. Coincidências?) E os três poemas são a exaltação desse objecto imprescindível ao saber e às bibliotecas, obviamente. E lá está a metáfora novamente a ressaltar a sua importância designando-o como “um banquete doce e bonançoso” (p.26), mas, às vezes, de difícil digestão. E a viagem pelo alfabeto continua pelo Natal, Outono, Palavras, Poesia, Poeta, Professor, Quero, Reencontro, Sorriso, Turma, União, Verão, Xenofobia e ZZZZZ, onde a autora vai deixando as suas marcas de docente tentando que a gramática flua ao sabor das letras e dos textos. E decerto conseguirá atingir os seus objectivos, nalguns casos.
No desfile das letras ficaram de fora duas que o leitor deve ter estranhado a não referência. São o M de MÃE e o P de PAI (o P é a letra mais profícua em poemas). São dois poemas emotivos e intensamente entranháveis, como se a autora quisesse dizer um obrigado altaneiro aos seus progenitores. E tenho a certeza que assim foi. A mãe é o “meu incomensurável mar / onde ponho o meu ansioso e buliçoso barco.” (p. 27) E, todo o poema, é um sentido agradecimento saído da alma a esse ser que nos dá a vida e que neste caso deu vida. Há nas suas palavras a mãe e a filha e outra vez a mãe que ela própria é. Mares tumultuosos, às vezes, mas onde a mão da timoneira orienta o barco e o faz chegar a bom porto. O Pai é “o seu guerreiro imortal” que defende a sua princesa de todos os perigos que a cidade oferece. Mesmo no além, ele continua presente dando-lhe “proteção incomensurável / como presença viva e afável” (p.33). Que melhor homenagem se pode pedir?
Os critérios de publicação do livro são os da autora e, por isso, não vale questionar as opções tomadas. No entanto, a inclusão dos aspectos estilísticos relativamente aos poemas apresentados tem implicações positivas e negativas. Positivamente, ajuda os alunos/leitores a interiorizar os mesmos exemplificando concretamente em cada situação referida. Negativamente, inibe a pesquisa criativa que os alunos/leitores possam fazer para chegar a esses processos. Talvez uma solução fosse fazer um elenco dos aspectos estilísticos a relevar e deixar ao leitor a possibilidade de encontrar, nos poemas, cada um deles. A colocá-los em rodapé, talvez o uso de tipo de letra diferente, desse mais destaque aos mesmos.
Fica uma pequena abordagem a mais um livro dedicado à nossa cidade e de gente de cá o que é sempre de exaltar, assim como o objectivo benemérito da publicação: as bibliotecas continuarão a ser indispensáveis mesmo na era das tecnologias.

HOJE
As casas da minha aldeia eram fogos de muita luz e cor.
Hoje, são apagões e espaços de incomensurável dor
Onde moram fantasmas e uma solidão lívida e incolor.

As casas da minha aldeia tinham o pulsar de um gigante fortalecido
Que caminhava como senhor e dono no seu território conhecido.
Hoje, esse gigante enfraquecido não passa de um espectro adormecido.

As casas felizes da minha aldeia originavam ruas movimentadas
Onde reinava saudável e feroz algazarra expressa em mãos dada.
Hoje, essas mesmas ruas são travessias ocas, vazias, despovoadas.