A barbaria parece ter regressado em força às portas da União Europeia.

A barbaria é uma prática sistemática em tempo de guerra. Os exércitos tendem a ganhar batalhas através da barbaria. A barbaria é a desumanidade completa. Perante a barbaria ficamos sem palavras. Mas a barbaria já entrou também nas nossas casas, através dos écrans de televisão. E, a bem dizer, já a aceitámos. A barbaria já não nos revolta, não nos mobiliza. Perante aqueles actos bárbaros de há dias, ocorridos em Boucha e outras cidades, ninguém deveria ficar indiferente. Se ainda existe em nós algum resto de humanidade, cada um deveria fazer o seu dever para não ficarmos eternamente culpados perante tamanha barbaria.
É evidente que a Rússia vai negar a barbaria cometida pelo seu exército. Tem todo o interesse em negar. “Menti, menti, que alguma verdade há-de ficar,” foi sempre a divisa dos dirigentes da União Soviética que o actual presidente da Rússia herdou e sabe manipular tão bem. No caso destes actos bárbaros, já se sabia que nenhum oficial da Federação da Rússia admitiria publicamente que o seu exército os pudesse ter cometido. Foi assim nas bárbaras guerras da Tchetchénia, da Síria e dos outros compôs de batalha. Os mortos são sempre o resultado de operações especiais, de missões antiterroristas ou de legítima defesa.
A cada um dos actos bárbaros cometidos pelo exército russo é emitido sempre o respectivo desmentido pelo Kremlin que apresenta, implacavelmente, uma contra-narrativa tendente a rejeitar a responsabilidade sobre os outros. A barbaria de Boucha vem juntar-se a uma já numerosa lista. Os horrores que ali se descobriram exigem, evidentemente, investigações independentes, antes de uma condenação formal. No entanto, as primeiras inquirições no terreno, os testemunhos concordantes e ainda as imagens satélites amontoam as provas contra o exército russo.
Pensávamos que as guerras actuais iriam ser limpas, cibernéticas, executadas sobre teclados digitais. Violentas sim, mas assépticas, que não chocariam os espíritos mais sensíveis. Pelo contrário, a guerra na Ucrânia está a desenrolar-se à velha maneira, servindo-se dos instintos mais selvagens, com um impudor infame de assassínios. Assiste-se ao horror de ver corpos decepados, calcinados, ao lado de um cesto de batatas no desespero de não morrer à fome, enterrados a meio com o braço no ar. O horror continua nas cidades arrasadas com misseis da última geração e nas imagens de milhões de refugiados fugindo por todas as fronteiras. Pensávamos que nunca mais voltaríamos a ver uma segunda Guernica, o horror absoluto! E eis que o inimaginável bate à nossa porta.
É muito fácil invocar a presunção de inocência, como é normalmente costume em matéria criminal. No entanto, continuamos à espera, talvez ingenuamente, que uma justiça internacional diga quem são os culpados e os condene a pesadas penas, porque barbaridades destas não podem ficar impunes.