E se, por um momento, puséssemos de parte os teclados que invadiram os nossos modos de viver para comunicar com os outros, através de mail, SMS, servindo-nos de smartphones e computadores e toda uma panóplia de máquinas?


Parece termos perdido o ritual do prazer da escrita á mão, a escrita feita pela mão dos humanos, tal como foi hábito durante séculos. Vale a pena lembrar o ritual de escrever à mão. O escritor é um artesão das palavras que transcreve no papel. Como qualquer artesão, tem de adquirir os utensílios necessários: uma caneta que se adapte bem ao manuseamento da mão esquerda ou direita, talvez uma esferográfica daquelas que escrevem fininho, quase parecendo uma caneta. Sentado a uma mesa, em silêncio, ou ao som de uma suave música, o tempo para. A página em branco diante de nós, desafia-nos a escrever as primeiras letras. Mas como começar, que escrever? E as primeiras palavras são as mais difíceis. Muitas imagens nos passam pela cabeça que será necessário converter em consoantes e vogais, em palavras que se articulem umas com as outras, para elaborar uma escrita que seja ritmada, que soe bem, que seja bela, com conteúdo que cative o nosso interlocutor. Cada palavra tem de ser pensada, refletida, ressentida.
Quando a ordenação sequencial das palavras não agrada ao artesão da escrita, só resta o prazer de ouvir o barulho do rasgar de uma página, cujo conteúdo escrito foi rejeitado pelo autor.
E o autor continua escrevendo, lendo, relendo, hesitando, descobrindo as palavras apropriadas.
Se o escrito é dirigido a uma pessoa de quem gostamos ou que amamos, o ritual requer a procura de um envelope rectangular ou quadrado, a compra de um selo usual ou de colecção. Em seguida, a carta tem de chegar ao destino e lá se vai dar um passeio até aos correios para colocar o envelope na caixa do correio. As palavras escritas já não nos pertencem. Desconhecemos se serão bem recebidas, se terão o mesmo prazer a ser lidas como aquele com que foram escritas. Espera-se uma resposta. Talvez até não se obtenha.
Imagina-se o nosso interlocutor a abrir o envelope e, pausadamente, sentar-se no salão, na secretária e desdobrar a carta para a observar e ler. É possível que faça um comentário ou que suspire, dizendo: “até que enfim que recebo uma carta manuscrita, escrita com uma caneta, com tinta azul. Isto é uma carta de um humano e não de uma máquina!”.
Antes que os correios desapareçam, contribuamos para que os carteiros continuem a levar as boas notícias por mão própria e não enviá-las através de canais que nos vão desumanizando.
Escrever uma carta é um acto partilhado, feito de paciência que já se vai perdendo. É também um acto de diálogo, pautado pelo tempo que nos vai lembrando que a vida é breve, preciosa, feita de pequenas coisas e também de palavras escritas, vistas e ouvidas que nos dão alegria e vontade de viver.