A memória das palavras

Este ano três de pandemia, parece que virou as atenções literárias para o continente africano. Depois do Nobel ir para a Tanzânia, também o nosso Camões foi para África. Mais concretamente para Moçambique. E a distinguida foi a escritora Paulina Chiziane, de 66 anos e autora de inúmeros livros publicados em vários países entre os quais obviamente Portugal.     «Dizem que sou romancista e que fui a primeira mulher moçambicana a escrever um romance, mas eu afirmo: sou contadora de estórias e não romancista. Escrevo livros com muitas estórias, estórias grandes e pequenas. Inspiro-me nos contos à volta da fogueira, minha primeira escola de arte.». Estas palavras da escritora definem-na como narradora única na literatura africana de expressão portuguesa. É também a primeira mulher moçambicana a escrever e publicar um romance em 1990, “Balada de Amor ao Vento”. Nascida em Manjacaze, bairro perif´rico da capital moçambicana, chegou a frequentar a Universidade, mas não acabou o Curso de Linguística.      É uma autora que bebe na tradição oral do povo e das estórias corredias entre o povo. E realça mesmo a sua ligação inequívoca à memória coletiva de Moçambique: “Tudo o que eu tentei escrever, nos diferentes livros, parte da nossa memória coletiva. Eu nunca falei, nos livros, na minha voz pessoal. Mesmo nos livros em que escrevo na primeira pessoa eu estou a trazer a voz coletiva. Portanto, é todo um povo que é agraciado por este grande prémio.”  Nunca renegou as suas origens e a sua vida foi feita de muitas lutas a favor do povo e das mulheres: “Eu venho de lugar nenhum. Eu sou aquela pessoa que aprendeu a ler e a escrever, foi escola…” . Teve essa sorte, mas também teve a sorte de caminhar pelo país e descobrir as maravilhas que este país tem. Então, eu não sou, propriamente, aquela pessoa que se pode dizer ‘Ela veio de um estrato social X, assim nobre’. Não, eu vim do chão! Portanto, um reconhecimento para alguém que veio de lugar nenhum, sem dúvida, é um motivo de inspiração para uma outra geração.” (Palavras proferidas depois de conhecer a atribuição do prémio.)     Quanto ao mundo feminino das suas obras, a crítica literária Ana Ximenes Oliveira afirmou: “A fertilidade feminina no contexto cultural de Moçambique mostra um feminino oprimido socialmente pela tradição do patriarcado, porém, por outro lado, mostra um feminino participando sempre comopeça central no funcionamento místico da comunidade. A mulher é tratada como objeto de pertença, entretanto é notório o poder e a força que esta gera no ambiente.” (Moçambique no feminino.)     É, de certo, uma escritora que merece ser lida e divulgada e felizmente em Portugal há bastantes livros publicados. Da sua escrita fala o prémio recebido pela sua obra: o Prémio José Craveirinha, em 2003 e, em 2014, foi agraciada com o grau de Grande Oficial da Ordem Infante D. Henrique, pelo Governo Português.      Fica o excerto de uma obra para aperitivo de leituras posteriores: “O jornal falou da mulher raptada, violada, assassinada. A televisão mostrou imagens de uma criança chorando ao lado do cadáver da mãe que tinha a cabeça decepada. A rádio falou da mulher a quem obrigaram a incendiaros filhos com as próprias mãos. Ninguém ainda falou da mulher que se apaixonou pelos olhos do assassino e fez do inferno seu ninho de amor. O jornalista esqueceu-se de relatar o caso fantástico da mulher que abraça apaixonadamente o homem que destruiu os seus descendentes e geme de amor rebolando sobre as cinzas dos filhos que gerou. (CHIZIANE, Ventos do Apocalipse.)