Ainda não há muitos anos, na tarde do primeiro de Novembro, após a oração das segundas vésperas de Todos os Santos, mudado o cenário dos templos, principiavam as primeiras orações do Dia dos Fiéis Defuntos. Cessavam os aleluias majestosos, depunham-se os paramentos festivos resplandecentes de alvura e envergavam-se as capas de cor negra.
Deixava-se de contemplar a glória dos eleitos, nos altos céus, e dirigiam-se o olhar e o pensamento para o purgatório, a fim de, agrupados no coração dos fiéis, na mesma assembleia orante, se fizesse a memória de toda a Igreja, perpetuidade incessante de Jesus Cristo: na glória celeste, uns, na expiação purificante, outros, e os demais, ainda na passagem pela terra. Era a união, embora em lugares diferentes, dos salvos em Cristo: santos do céu, almas do purgatório e peregrinos deste mundo.
Sempre, nas grandes orações eclesiais, estavam presentes as intenções diferenciadas dos seguidores do Senhor, mas juntarem-se na grandeza refulgente da mesma cerimónia era só no começo de Novembro. Aos primeiros enalteciam-se e louvavam-se, aos segundos recordavam-se e por eles se rezava e para os que ainda peregrinavam na terra suplicava-se a misericórdia e os favores divinos.
Não é muito clara a origem deste rito, mas, desde o século X, estava a difundir-se por toda a terra.
Os melhores estudiosos, explicando esta coesão, ligam-na à festa de Todos os Santos, onde se contemplavam os magníficos modelos dos antepassados na fé. Para não se esquecerem outros fiéis já falecidos cuja memória recordava não poucas virtudes e ainda lembrar os defuntos conhecidos ou familiares bendizia-se o Altíssimo, suplicava-se a intercessão dos já falecidos e rezava-se pelo seu eterno descanso. Deste modo se reunia na mesma evocação os que precederam na vida e na crença os fiéis ainda na terra. Ressaltava-se assim a unidade de todos os baptizados no Senhor.
Como se quis unir toda a Igreja na mesma comunhão, ainda no dia de todos os Bem-aventurados, se celebravam duas vezes as vésperas: umas dos Santos e outras dos Fiéis Defuntos, cujos lugares litúrgicos se irmanavam no conjunto dos mistérios de Cristo terminados com o Pentecostes.
Alguns desejarão averiguar o motivo por que foram mudadas as datas para o início de Novembro. É que, nesse dia, grande multidão de gente vinha a Roma visitar os sagrados túmulos sobretudo dos mártires e, devido ao avançado da época, faltava o pão na cidade. Para obviar tal contratempo, mudou-se a solenidade para as calendas de Novembro, quando os arcazes ainda estavam cheios da recolhença outonal.
A memória dos mortos não tem origem apenas na fé cristã. Muitas centúrias antes de Cristo, se erguiam já mausoléus, sarcófagos e outros monumentos tumulares, a fim de prolongar por séculos a sua lembrança.
Os cristãos, iluminados pela crença no além e conhecendo a existência do purgatório, cedo começaram a rezar sobretudo pelos seus familiares, a fim de obterem para eles a felicidade do céu, sem removerem os costumes dos pagãos que podiam acomodar-se às práticas da sua religião, como por exemplo as refeições tomadas sobre as tumbas dos seus maiores.
Daqui, as orações feitas nas reuniões familiares e às horas das refeições.
Se a memória dos defuntos nas missas é comum na maior parte das liturgias, desde o século III, pois se liam os dípticos, listas de pessoas por quem se rezava na missa, ou recordavam-se na grande súplica intercessora, prece proferida após a consagração. Esta lembrança anual dos mortos estendeu-se por todas as Igrejas, embora em datas diferentes.
Nos livros bizantinos, lemos: “No sábado que precede o carnaval, celebramos a memória de todos os cristãos ortodoxos, padres e irmãos nossos saídos já deste mundo”.
A piedade para com as almas do purgatório alcançou uma amplitude tamanha que sobrepujou os tempos litúrgicos, e quase não há irmandade religiosa que não tenha nos seus estatutos esta memória, para a celebrar uma vez por ano, sobretudo em Novembro.
Deste modo, se realiza a comunhão de todo o Corpo Místico de Cristo: os bem-aventurados do céu, as almas do purgatório e os peregrinos para a pátria eterna ainda neste mundo.
Claro que muitos destes costumes, alguns já ultrapassados, têm ressaibos da Idade Média, época da composição de alguns dos textos recitados ainda hoje.
Nada têm de comum, por exemplo, a sequência “Dia da Ira”, a relatar o Juízo final, de uma forma perturbadora e o hino “Luz esplendente da Santa Glória” nascidos em tempos e lugares diversos, embora fundados na mesma fé, como não são iguais as pinturas de Miguel Ângelo e de Frei Angélico.
Mesmo as missas do terceiro, sétimo ou trigésimo dia nasceram de costumes bem antigos, quando os familiares aos quais se juntavam amigos e conhecidos, visitavam as sepulturas dos seus mortos e aí faziam cerimónias religiosas desde a celebração de missas até a preces populares herdadas da antiguidade.
Hoje, muita gente pretende estar longe dos mortos, para se poupar ao sofrimento e à recordação afectiva de ausentes. Recordamos tempos idos que ninguém era perturbado com cerimónias fúnebres nem com lutos ou prantos.
Não é o afastar tal lembrança que nos livrará da morte. A fé em Deus iluminará o nosso futuro último.