A sagrada quarentena não surgiu segundo os moldes hoje vividos. Foi tomando, através dos anos e dos séculos, novas dimensões e insólitos perfis.
No início do cristianismo, havia apenas, em toda a piedade cristã, uma festividade e uma única memória do Senhor apoiada no mandato de Jesus, na última ceia: “Fazei isto em memória de Mim”. Depois, o memorial explanou-se em variados aspectos cujas primordiais lembranças eram a morte e a ressurreição de Jesus saboreadas no gozo de os fiéis se sentirem remidos. Logo a seguir, nasceu o dever de toda a assembleia dos crentes examinar o seu interior e ver se os frutos da redenção estavam a viver-se na existência de cada um. Principiou então a necessidade de, na passagem das festas pascais, se renovar a regeneração recebida no baptismo.
Daqui, despontaram exercícios quaresmais muitos deles ainda em vigor: mortificação, jejum e abstinência, preces mais frequentes e aprofundadas, peregrinações, reiteração dos sofrimentos de Cristo, sobretudo na caminhada para o calvário, a via sacra, e muitos costumes que foram permanecendo, aqui e ali, para uma santificação mais autêntica.
Nos tempos hodiernos, vieram os exercícios espirituais, as peregrinações à terra santa sobretudo a Jerusalém para subir ao Calvário, retiros em lugares solitários e recolhidos.
Para além desta oração singular e privada, segundo as tradições mais adaptadas à índole das regiões e assembleias, alguns exercício devocionais muito apreciados pelo povo, não só porque realizados na língua materna como ainda com movimentos e formas mui apreciados, tais são as procissões, as adorações solenes ao Santíssimo, o Rosário a Nossa Senhora, novenas e preces ininterruptas em ocasiões singulares.
Ultimamente, por causa da falta de conhecimento das coisas religiosas, vão-se perdendo hábitos que intentavam inserir nos hábitos de devoção, mesmo através de sensibilidades psíquicas, o fervor e entusiasmo mais terno e afectivo.
O tempo de preparação para a Páscoa encheu-se, por toda a parte, destes exercícios espirituais, para criar ambiente profundo de recolhimento meditativo e mais veemência interior, faziam-se acompanhar também por cânticos, gestos, figurações, cuja verdade se gravava melhor na lembrança.
A devoção no tempo da quaresma enchia-se de figuras bíblicas, a colocar sob os nossos olhos os acontecimentos mais representativos da salvação operada por Jesus Cristo.
Era sobretudo no tempo preparatório para a celebração pascal que se veneravam as imagens de Jesus no horto das oliveiras, com a cruz às costas, pregado no calvário, morto e enterrado. E, para melhor se viver a evocação, tais exercícios eram acompanhadas ou de leituras bíblicas ou de pregações, a comentar o acontecido.
Ainda não há muito tempo, para envolver a recordação piedosa em sentimentos de dor, pesar e mágoa, nos tempos quaresmais, proibiam-se, pelo costume antigo, as diversões, as danças, os chacotas e zombarias. E, no campo, era fácil escutar cantos dolentes e recitativos evangélicos ou mesmo poesias neles assentes alusivas aos sofrimentos de Jesus, para união mais íntima ao seu amor. “Lá em cima, no altar mor,/ Está um craveiro na cruz./ Os cravinhos que ele deita/ São o Sangue de Jesus./ Sinto chorar no Calvário/ Madanela, (Madalena) quem será?/ Crucificam a Jesus/ São ais que a Senhora dá/”….
Não se escutavam as cantigas normais noutras estações do ano. O sagrado apoderava-se do ambiente lúgubre apenas perturbado pelo cantar da passarada alegre com a aproximação da primavera.
Era o aprofundamento das realidades espirituais que vinham à lembrança, no íntimo da alma, e que questionavam a renovação do espírito para melhor se refazer o íntimo dos fiéis, à medida da proximidade da festa das festas.
Hoje, torna-se menos palpável e visível o surto de piedade que se desenvolve na sagrada quarentena, porque o ambiente mundanal nos projecta para as realidades temporais, através do barulho das notícias, dos estímulos para as distracções, dos apelos para as compras e vendas, das reclamos para os divertimentos, sem falar nos passeios, a fim de saborear a amenidade primaveril.
Para além das penitências individuais, o impulso de outrora encaminhava os crentes para a oração a favor dos pecadores necessitados de arrependimento. Era o sentido da solidariedade bem patente nas missas penitenciais com maior concurso de gente, mesmo nos dias de semana.
Embora alguns pastoralistas sempre agarrados aos documentos e doutrinas mais recentes teimem contra esta piedade popular, o Catecismo de 1992 faz este comentário: “Além da liturgia, a vida cristã nutre-se das variadas formas de piedade popular, enraizadas nas diferentes culturas. Procurando esclarecê-las com a luz da fé, a Igreja favorece as formas de religiosidade popular que exprimem um instinto evangélico e uma sabedoria humana, e que enriquecem a vida cristã”.