Os dias da cidade
A aldeia foi o centro do mundo. Em tempos. Hoje é o refúgio de uns poucos, teimosos e envelhecidos, a maior parte. Continuam enraizados num mundo que ainda lhe diz sentimentalmente alguma coisa, mas que a alguns das gerações mais recentes, nada diz e nada significa. São amontoados de casas, carregadas de solidão, onde permanece a alegria de viver em contacto com a natureza e a vida simples, mas que vão amarelecendo com as marcas de um tempo corrosivo de pedras e caminhos.
A minha aldeia já esteve cheia de gente. Mas a emigração levou famílias inteiras. E por lá ficaram com ideias novas, com mentalidades mudadas. Dos muitos que saíram, regressam alguns temporariamente. Fazem-se uns convívios nas festas, confraterniza-se. Os que estão recebem os que vêm. Os que vêm revivem memórias.
À aldeia, quem chega do lado da cidade e vira à esquerda, depois de passar um leve outeiro começa a descer deixando, encontra do seu lado direito, umas casas abandonadas. Quem as viu, brilhantes no esplendor de uma das famílias mais ricas da aldeia! Agora com telhados musgosos a cheirar a solidão e a abandono. Mas, a paisagem que se segue, descendo já em declive meio acentuado, merece que se pare um pouco a contemplar o pequeno vale onde escorre, em invernos mais rigorosos, um lento regato. (Há umas boas décadas atrás, impedia mesmo a passagem para a escola dos gaiatos em semanas de chuvadas intensas e persistentes. Claro que a razão era o caminho servir simultaneamente de leito ao ribeiro.) Mas a vegetação que enquadra a vista é agradável e induz uma sensação de agrado moderado. Em seguida, e passadas umas casas, recentemente recuperadas, ao dobrar o cotovelo do caminho, vê-se a povoação aninhada no fundo dos lameiros do vale. Outrora férteis e bem aproveitadas veigas, agora pastos verdejantes alimentícios de vacas diversas em raças importadas que substituíram as turinas e as jarmelistas
As casas estão, a partir daí, semeadas aos lados das ruas caindo de repente sobre a lama que encharcava o caminho. De pedras velhas, gastas pelos anos e pelo feroz vento norte, fazem cara feia a quem chega, mas sorriem a quem veem todos os dias. Ariscas para uns, amáveis para outros, retribuem o bem que receberam ao longo dos séculos, embora sejam também o espelho de quem as habita e da sua peculiar maneira de ser.
Bate-se, de repente, ao fundo da descida, com o muro recuperado de uma habitação quase secular, guardiã da aldeia e dos seus medos escorregadios dos invernos rigorosos. Depois a rua desce e bifurca-se. Para baixo fica o chafariz velho que até secava no verão. E tinha um largo onde as brincadeiras de fim de tarde juntavam a garotada para as escondidas ou qualquer outra gaiatada que desanuviasse, quer da escola, quer dos trabalhos agrícolas pesados para aquelas colunas débeis. E havia ainda o pereiro com frutos doces e breves, atração das barrigas mais famintas nas manhãs quase frias de uns setembros pouco promissores. Lá para o fundo, os lameiros esperavam com o gado impaciente que a brincadeira não se prolongasse muito para poderem recuperar alguma erva para o dia seguinte. E quando a demora era persistente lá vinha o berro estridente a lembrar as obrigações familiares que a pouca idade fazia esquecer.
A outra rua crescia para as bandas do comboio, apitando ao longe nas tardes em que o vento soprava dos cumes anatómicos do Jarmelo. E lá no fim a quinta. Onde se precisavam braços para os duros trabalhos agrícolas, remunerados com pouco dinheiro e algum alimento que não chegava para matar a fome às barrigas numerosas das famílias da aldeia. Respirava fartura e as vacas e as ovelhas abundavam pelos campos. Depois vinha a descida para os lados do comboio: primeiro suave e a seguir mais acentuada terminando no ribeiro exíguo do fundo do vale.