ROSTOS DO ÚLTIMO NATAL

«Vemos, ouvimos e lemos»

Estamos quase a mudar de era. Amanhã estaremos já em 2016. Liturgicamente celebra-se o dia de Maria, Mãe de Deus. Mas é também o Dia Mundial da Paz, sobre o qual o Papa Francisco fez publicar a tradicional mensagem. Os jornais vão fazendo o balanço do ano que vai expirar. No momento em que escrevo, nesta noite de 31 de Dezembro de 2015, as televisões vão difundindo imagens do que se vai passando no planeta, à mistura com polícias armados em estratégia concertada de prevenção contra ameaças terroristas. Mas amanhã é também a oitava do Natal, da Natividade do Príncipe da Paz. Nesta última de 2015, proponho um olhar, já não sobre os 365 dias do ano, mas sobre o próprio Natal vivido há uma semana.
Contrastando com a simplicidade única do Natal de Belém, são muitos os rostos por que se apresenta o Natal. Se cada um de nós, em conformidade com a história individual e circunstâncias da vida, concebe um Natal muito próprio e pessoal, haverá também situações e factos que poderão constituir-se como detonadores de consciências adormecidas pelos hábitos antigos e indiferenças inominadas.
Sugiro, para o efeito, não o balanço do último Natal, mas a memória de algumas situações.
Parece ter havido um natal dos milhões. Enquanto a generalidade dos portugueses foi deitando contas à vida, os média fazem-nos chegar novas de milhões aos milhares. Já estávamos habituados aos euro-milhões, aos milhões de outras lotarias e aos milhões de euros para os bancos, bem como a muitos milhões ligados a situações de corrupção, mas ultimamente outros milhões vieram alargar o campo dos milhões. Agora estão na ordem do dia os milhões para os direitos televisivos dos jogos de futebol. No momento em que escrevo, ouço que os hotéis, na generalidade do país, se encontram praticamente esgotados nesta passagem de ano. Imaginamos, então, milhões de euros a girar, em papel ou em electrões, pelas bancadas de cada recepção hoteleira. E milhões de portugueses vão sendo presenteados, até atordoados ficarem, com esta passagem estonteante de tantos milhões. Eu, pelo menos, vou ficando com a cabeça à roda. Para milhões, não me falte, isso sim, a Bondade pura, simples e infinita do amor de um Deus que assumiu a humanidade dos milhões de seres humanos.
Parece ter havido também um natal dos presentes e dos presentões. Há um telemóvel de 1.000€ oferecido a uma criança de 10 anos. É um presente da mãe enquanto se queixava da crise e da carestia da vida. Não sei que funcionalidade terá aquela máquina nas mãos duma criança, mas o menino de dez anos sabê-lo-á! O meu telemóvel custou-me vinte vezes menos há quatro anos e sinto-me bem com as suas fracas funcionalidades. Com presentes desta natureza só posso concluir que sou um pobre e um triste ignorante.
Mas há também um jogo da PlayStation para maiores de 18 anos oferecido por uma avó a uma criança de 8. Tanto terá pedido que acabou por ver cumprirem-se as palavras do Evangelho: «pedi e recebereis». Um presente entregue à criança nessa noite santa para que dele pudesse usufruir ao longo da tarde do dia de Natal. E parece que a criança não se fez rogada, acompanhada, aliás, por outros familiares próximos. No meio dos tiros, feridos e mortes, será de desafiar a esperança e acreditar que o menino tenha saído dali de boa saúde, mental e espiritual. Nestes casos de presentões, os comentários são despiciendos e será melhor ficarmo-nos pela atitude do P. António Vieira: não louvo nem condeno, mas não posso deixar de me admirar.
Houve também Natal interdito. A Fundação Ajuda a Igreja que Sofre (AIS) avançou a informação de que milhares de cristãos no Vietname foram impedidos pelas autoridades locais de participar nas celebrações do Natal, nas povoações de Djak Lak e de Xe Dang. Mas a Fundação vai mais longe e acrescenta que este “ataque à liberdade religiosa retrata bem como os cristãos continuam a ser perseguidos naquele país comunista” e que “nos últimos tempos, têm-se somado as notícias de demolições de igrejas ou capelas ordenadas pelas autoridades”. Um Natal que não pôde ser celebrado a fazer lembrar a profecia do velho Simeão: este Menino é sinal de contradição no meio dos homens de quem se fez irmão.
Deixei para o final, um sinal de esperança. Esperança intitulou António Luís Machado a sua coluna de 28 de Dezembro publicado no jornal I. Por ela vim a ter conhecimento de um vídeo divulgado pelo Benfica. Não importa, aqui e agora, se o vídeo mostrava um episódio espontâneo ou se se tratava de um acto promocional do clube. O que importa salientar é a mensagem transmitida pelo comportamento daqueles meninos de Cabo Verde. Além de gostarem de futebol também gostavam da escola e de varrer a casa. Jogavam futebol descalços quando interromperam o jogo para cada um receber de presente um par de chuteiras. O jogo já era agora de meninos calçados, quando irrompem outros meninos descalços atraídos pela maravilha. E a partilha surge: cada menino calçado dá uma das suas chuteiras a outro menino descalço e o jogo continuou com um pé calçado e outro descalço. Mas a mensagem dos meninos de Cabo Verde não ficou por aqui. Interrogados por que razão eles jogavam com um pé descalço, um deles deu a seguinte resposta: «Nós não jogamos com um pé descalço, nós jogamos com um pé calçado».
Bela lição nos vem de crianças de Cabo Verde. Apesar da miséria que nos rodeia, habituámo-nos a viver em tanta abundância qua já só sabemos olhar para aquilo que não temos, seja um telemóvel topo de gama ou uma PlayStation do último grito.
Saibamos nós ler a mensagem que, neste Natal, meninos de Cabo Verde nos enviaram. Mesmo tendo um pé descalço, saibamos olhar também para o pé calçado. Nunca haverá calçado suficiente para satisfazer a ambição com que transportamos às costas o verbo «ter».
Obrigado meninos de Cabo Verde. A vossa humanidade inocente calou fundo na minha indiferença. Fica-me o rosto do vosso Natal. Com ele posso jubilar neste Ano da Misericórdia. Sede felizes, agora e sempre.
Guarda, 31 de Dezembro de 2015

Notícias Relacionadas