José Augusto Garcia Marques – Juiz Conselheiro do STJ – Jubilado
À medida que vou avançando na idade, mais tempo vou vivendo das (com as) minhas recordações e memórias. Com efeito, volta e meia dou comigo a recordar episódios passados, por vezes há longos anos, muitos na minha idade juvenil ou escolar, ou seja, nos tempos de boa memória que vivi na Guarda. Acontece também ter sonhos frequentes a respeito da vida de estudante, projetando no sonho situações mais ou menos agradáveis. Em contrapartida, estou progressivamente mais cansado da realidade do dia-a-dia, quer no plano nacional quer no internacional.
A idade, a repetição de factos graves e, até, desumanos, que nos abalam psicologicamente e a falta de nobreza por parte dos “grandes” do país ou do mundo são as principais razões para este cansaço que sinto crescer em mim. Acresce a insuportável repetição de comentários tolos ou deslocados, de lugares comuns e de trivialidades, da autoria de gente cheia de si, que se julga insubstituível e distribuidora de “pérolas” aos espectadores que têm a (in)felicidade de os ouvir.
Sempre dei valor a quem, no meu juízo, era merecedor de apreço e admiração. Custa-me ouvir dizer mal por inveja ou por razões mesquinhas. Daí que, com a inevitável limitação de tempo útil de vida criativa, me sinta levado a reviver recordações e personalidades que me ajudaram a desfrutar da vida. Assim vivo de novo, mato saudades e relembro pessoas que já cá não estão, mas não merecem cair no esquecimento.
Foram Colegas, Professores, Amigos – alguns com obra científica publicada, outros, gente de família, simples e modesta, homens e mulheres de trabalho – que me fazem muita falta. Seria capaz de enumerar muitos deles. Mas não o vou fazer, a não ser incidentalmente, a título de ilustração ou exemplo, porque não quero ser injusto para tantos outros cujos nomes agora não me ocorrem e também porque, sendo a estima e a admiração sentimentos subjetivos e profundamente pessoais, iria por certo despertar discordâncias e suscitar divisão de opiniões.
Feito este (longo) introito, refugio-me nas minhas memórias, algumas das quais vou procurar revisitar. A Minha Mulher, Maria Lúcia, que escreve de uma forma admirável, disse um dia, a propósito das recordações: “As recordações são pinturas e as palavras, as pinceladas que aviventam, em perspetivas inteiramente pessoais, que o tempo e os olhos do coração conformaram, as narrativas mais ou menos emotivas ou emocionadas. (…) Neste universo, o importante não é julgar do rigor ou da verdade do que se narra ou lembra mas o trazer até ao Presente acontecimentos e personalidades que o pesado correr da História distanciara de tal modo que os depositara no esquecimento” (“Palavras Guardadas”, 2012, pág.8).
Numa das últimas noites tive um sonho que remete para o meu tempo de estudante. Estava algures, numa terra muito distante, porventura em Macau, e tinha de fazer um exame sobre matéria que nunca tinha estudado. Uma viagem afastara-me do local onde teria de prestar provas e o tempo passava velozmente sem me dar possibilidade de chegar a horas ao exame. Tentei telefonar, comunicando o meu atraso. Mas o telefone não funcionava ou não era atendido. O colega que deveria ter feito exame imediatamente antes de mim regressara ao hotel onde eu me encontrava. Constatei então que me seria totalmente impossível alcançar o meu objetivo. Acordei em sobressalto, quando tentava informar-me sobre a possibilidade de adiar o meu exame…por alguns dias.
Como recordava o sonho em detalhe, tratei de passar em revista as minhas memórias sobre o meu tempo de estudante para encontrar algum acontecimento real que pudesse ter alguma relação com o sonho. E facilmente o encontrei. No Verão de 1961, preparava-me para fazer o meu primeiro exame do 2º ano de Direito na primeira grande disciplina da área do Direito Civil – a “Teoria Geral da Relação Jurídica”, ministrada pelo Professor Paulo Cunha. Contrariamente ao sonho, eu tinha preparado bem a matéria e sentia-me em condições de prestar boas provas orais. Aliás, a escrita já tinha sido bem classificada. Tinha visto a pauta dos exames e verificara que eu seria o último a prestar provas. Por isso, sem pressas e após um bom banho de imersão, parti para a Faculdade. Dirigi-me à sala onde as orais já estavam a decorrer, bem longe de imaginar que estava à beira de viver um episódio que chegou a ser angustiante e cujos contornos tiveram alguma similitude com os do sonho.
Faço aqui um parêntesis para esclarecer que o meu Pai falecera em abril desse ano de 1961. O meu primeiro ano letivo decorrera com o meu Pai já muito doente – tive mesmo de o acompanhar a Londres quando ele ali foi operado no fim do Verão de 1960 – o que, não me tendo feito perder qualquer cadeira, teve, porém, consequências negativas para uma melhor preparação para os exames do 1º ano. Tendo o meu Pai morrido em abril, num momento já avançado de um dos anos tradicionalmente mais exigente do curso – o segundo – resolvi concentrar todos os meus esforços nos três “cadeirões” que tinha pela frente e cuja preparação eu tinha até então negligenciado por compreensíveis razões de acompanhamento do estado de saúde do meu doente – a já referida disciplina de Direito Civil, o “Direito Administrativo”, ministrado por Marcello Caetano e a “Economia Política” ensinada por Costa Leite (Lumbralles) – e deixar para a época de outubro as disciplinas mais suaves de “Direito Internacional Público” e de “Direito Corporativo”, ministradas, respetivamente, por Silva Cunha e Soares Martinez.
Voltando ao meu exame, imagina-se o enorme prejuízo que eu iria sofrer se não pudesse fazer, na data prevista, o exame na cadeira do Doutor Paulo Cunha. Mas a verdade é que, quando cheguei à sala com as orais já em curso, o contínuo que estava pelo corredor informou-me que o Conselheiro que presidia ao júri – naquele tempo os júris de exame nas orais do curso de Direito eram “presididos” por um Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça – era inflexível acerca da necessidade da presença de todos os examinandos logo no momento da respetiva chamada para o início das provas, ainda que só entrassem para prestar a sua, três ou quatro horas depois. E foi esse o entendimento que o Conselheiro Gonçalves Pereira me transmitiu quando falei com ele. explicando-lhe que só entraria para exame cerca de três hora depois. Nada pareceu demovê-lo. Não me conformando, manifestei a intenção de falar com o Professor Paulo Cunha. Avisado, o Professor Paulo Cunha chamou-me logo que terminou o exame que estava a decorrer, e acedeu de imediato ao meu pedido, dizendo apenas que seria o último aluno a prestar provas nessa manhã. Agradecendo, não deixei, porém, de esclarecer que já era esse o lugar que me cabia na pauta … Fiz um exame à minha medida, confortável e bem apoiado com as leituras que fizera muito para além do estudo da “sebenta”. Tudo decorreu dentro dos prazos atingindo “em beleza” o objetivo que me propusera. Calderón de la Barca escreveu uma notável peça de teatro que intitulou “La vida es sueño”. E, digo eu, quantas vezes um sonho bom!
Lisboa, 26 de dezembro de 2024