Decorreram em Évora, entre os dias 23 e 25 de Abril, os Encontros da Primavera 2015, o maior Congresso sobre Doenças Oncológicas realizado no nosso País.
Fui convidado para participar na sessão sobre a “Pessoa Laringectomizada: Diferentes Momentos, Diferentes Perspectivas”, integrada no “Programa de Enfermagem”. Não sendo eu médico, enfermeiro ou técnico de saúde, qual a razão desse convite, perguntar-se-ão os meus leitores? A explicação é simples: fui transmitir a minha perspectiva como doente laringectomizado, que sou desde há quase cinco anos. Fi-lo numa intervenção de cerca de vinte minutos, em power point, com exibição de vários slides que preparei, com a indispensável ajuda da minha Filha Ana, sob o título: «Um Testemunho: o antes, o durante e o depois».
Estava algo nervoso, não por falta de experiência em intervenções similares, embora na área jurídica, mas com receio de que a voz me pudesse pregar uma partida. Graças a Deus, correu tudo muito bem. Com a ajuda de um sistema de amplificação sonora exemplar, a minha voz fez-se ouvir perfeitamente e sem falhas.
Não vou fazer aqui o relato da minha apresentação. Limitar-me-ei a uma breve síntese, salientando alguns pontos para dar a conhecer um pouco melhor os problemas dos doentes submetidos a uma laringectomia e para divulgar uma iniciativa ora em curso, de apoio aos laringectomizados, a cuja denominação fui buscar o título desta crónica.
A laringectomia é uma operação mutiladora que provoca a perda de diversas capacidades ao paciente, a mais importante das quais é a perda da voz. Durante o (longo) período de internamento hospitalar, não inferior a quinze dias, subsequente à cirurgia, o doente passa a comunicar através de gestos ou, como foi o meu caso, pela escrita.
Foi assim que, durante esse período de internamento e na fase de radioterapia que imediatamente se seguiu, preenchi três grossos cadernos, com perguntas, recados, reflexões, receios e angústias. Dediquei naturalmente algum tempo da minha intervenção a sublinhar a importância da palavra e da comunicação em tempo de angústia e sofrimento. Exibi, por isso, alguns slides com textos que escrevi “quando não falava”. Textos que considero valiosos por serem testemunhos contemporâneos e autênticos desse período de dúvidas e ansiedade.
Mas a comunicação pela palavra escrita levanta naturais dificuldades: é o tempo da própria escrita, a seguir o da leitura e interpretação, nem sempre fácil da caligrafia e do conteúdo da mensagem e, por fim o tempo da própria resposta, por vezes algo desfasada relativamente às preocupações que motivaram a pergunta. Ora, as dificuldades que se colocam ao doente exigem reacção pronta, quiçá, imediata, se se tratar, por exemplo, de problemas respiratórios resultantes de “rolhões” que entopem a cânula e dificultam a passagem do ar.
Isto porque o doente laringectomizado deixa de respirar pelo nariz ou pela boca, passando a fazê-lo por um buraco feito na garganta – o estoma tráqueo-esofágico. É nesse estoma que, logo após a cirurgia, é colocada uma cânula através da qual o ar acede aos pulmões.
A experiência vivida durante o dia-a-dia do meu internamento hospitalar permitiu-me testemunhar o trabalho dedicado e admirável da generalidade do pessoal clínico. O meu cirurgião nunca deixou de me visitar, fazendo-o por vezes a horas já avançadas, conforme lho consentia uma agenda muito sobrecarregada. Passei a admirar a acção das enfermeiras, a sua capacidade de distinguir as situações de particular gravidade, agindo sem demora nos casos de maior aflição, dando particular atenção à angústia dos doentes que não podiam comunicar pela palavra falada, a sua postura educativa e pedagógica, recomendando a presença de espírito dos doentes ou a adopção de gestos simples e de técnicas mais fáceis, desde o acto de tossir até formas mais expeditas de desatar os nastros da cânula.
A laringectomia e a radioterapia provocam ainda outras consequências em termos de perda de capacidades no imediato ou a médio prazo, matéria de que não vou falar neste texto para não incomodar os meus leitores e para não agravar a minha própria angústia, como inevitavelmente acontece quando recordo o que vivi e continuo a viver.
Pretendo, no entanto, transmitir a quem me lê que a voz se pode recuperar e afinar. Para isso é fundamental a terapia da fala, um grande passo para uma vida normal e para o aumento da auto-estima. É a fala que, na verdade, contribui para fazer de nós plenamente humanos.
Com esforço e persistência, com a indispensável implantação de uma prótese fonatória, torna-se possível comunicar em condições bastante aceitáveis, desde que não haja muito ruído ambiente e desde que o interlocutor respeite a nossa deficiência, não sobrepondo à nossa a sua voz, mais poderosa e com superior projecção. Além desta (voz tráqueo-esofágica), é possível, com maior esforço e cansaço, comunicar por intermédio da voz esofágica. Há laringectomizados que comunicam por voz esofágica com muita qualidade e eficácia. Pela minha parte, tenho feito progressos acentuados, graças às sessões de terapia da fala, podendo exprimir-me, em ambiente de silêncio, durante vários minutos seguidos, em voz esofágica. Continuo, porém, a privilegiar a voz tráqueo-esofágica, ou seja, com o apoio da prótese fonatória, que me permite, com menor cansaço, debitar um caudal superior de palavras.
Viver é passar por uma sucessão de bons e maus momentos. Daí que alguém que passou/passa por uma experiência similar, fique a apreciar mais as coisas simples da vida e dê maior relevo ao valor terapêutico de algumas actividades, como é o caso da escrita. Mas mentiria se não dissesse que a minha vida decorre entre a esperança, a ansiedade e o medo. É por isso, para dar relevo à esperança, que quero dar testemunho da viagem-peregrinação em bicicleta, de Setúbal ao Vaticano, de um grupo de seis amigos, entre os quais se contam dois laringectomizados (um ciclista, sendo o outro o condutor de uma carrinha de apoio), que partiu da capital do Sado, em 16 de Abril, o dia mundial da Voz, e que, após passagens por Fátima e Lurdes, tem chegada prevista ao Vaticano no dia 13 de Maio, data em que deverão ser recebidos pelo Papa Francisco. Trata-se de uma iniciativa designada por “DAR VOZ À ESPERANÇA”, com apoios de várias entidades, entre as quais a Liga Portuguesa contra o Cancro e que visa, além do mais, dar a conhecer, divulgando-a, a acção humana e solidária do Movimento de Apoio aos Laringectomizados (MovApLar). Trata-se de um percurso de 2.900 kms., ao longo de 27 dias e atravessando quatro países, numa admirável manifestação de fé. No momento em que escrevo, os peregrinos estão a percorrer terras de França1 .
Este grupo de amigos e sua nobre missão em favor das pessoas laringectomizadas vem, a seu modo, dar sentido à frase com que concluí a minha apresentação em Évora: “Isto de viver é uma história demasiado breve. Por isso, enquanto por cá andamos, saibamos cuidar das nossas flores, tratar do nosso jardim e, sobretudo, viver com os outros”.
(Footnotes)
1 Se quiser acompanhar a viagem-peregrinação a caminho do Vaticano, pode fazê-lo no seguinte endereço: http://setubalvaticano.blogspot.pt/