“No seu fim de vida aquela não era a minha mãe. A única coisa que lhe restava era uma enorme esperança. Osso e esperança. Vida, muito pouca, quase nenhuma. E a esperança, mesmo que transbordando, sabemos que não se substitui à carne nem à vida.
Nos últimos dois anos, nunca falámos de eutanásia. Sabíamos que estávamos em campos opostos. Eu, por princípio, a favor, mas com muitas dúvidas, ela contra e com muitas certezas.
O seu estado foi para mim um enorme teste. E ela sabia-o.
A morte da minha mãe foi de uma enorme tranquilidade. Foi devagar, sem grande estrondo no chão. Graças a muitos e bons profissionais, foi possível ampara-lhe a queda.
Mas mesmo sem dor, aquela já não era a minha mãe. Nem nos últimos dias/semanas aquela vida era digna desse nome. A vida não é dura apenas quando dói. E definhar tão lentamente mesmo sem sofrimento não pode ser tolerável.
Mas como pude, enquanto filho, pensar nisto?
A enorme perda de faculdades que nos classificam como indivíduo irrepetível e livre, a perda objetiva e irreversível de mínimos de qualidade de vida, podia ter-nos levado até um espaço de decisão em que se tivesse interrompido o curso normal da existência da minha mãe.
Porém assim não aconteceu. Ambos resistimos com dignidade. Ela com a dignidade da vida e eu com a dignidade de quem soube respeitar a vida apesar daquelas que eram as minhas convicções.
Hoje, após esse terrível teste, a minha convicção é necessariamente diferente. Tudo mudou radicalmente e considero que vale a pena defender a vida e levar esse projeto até ao fim! ”
Nada mais oportuno do que trazer aqui este depoimento anónimo, num momento em que a CULTURA da MORTE teima em voltar à agenda política.
Percebe-se de forma inequívoca, a partir deste testemunho, que as decisões sobre uma questão que toca a vida e a morte, não são fáceis de assumir e que geram mudanças substanciais na forma como entendemos e nos posicionamos em relação à eutanásia.
Quando nos alegam, em defesa da eutanásia, o “direito a morrer dignamente”, estão a procurar transmitir-nos a ideia de que todos aqueles que decidem suportar a dor e os impedimentos físicos morrem “indignamente”. Nesta linha de pensamento, resistir à morte seria uma “indignidade”. Nada de mais errado!
Já agora, uma pessoa que resista com a coragem deste exemplo, além de “indigna”, também não poderá vir a ser considerada um “fardo para a sociedade”?
E eutanasiar não será mais barato do que tratar?
O problema do sofrimento não se resolve eliminando o sujeito desse mesmo sofrimento, resolve-se eliminando o sofrimento em si mesmo, daí importar que se adotem práticas médicas que minimizem o sofrimento, mantendo simultaneamente a dignidade da vida de todos aqueles que, por uma razão ou por outra, se encontram em situação de doença grave, progressiva e irreversível.
Numa matéria desta sensibilidade, devemos igualmente questionar-nos sobre qual será a legitimidade democrática para que um conjunto de deputados sobre ela possam decidir?
Será uma questão que se resolve com uma simples lei? Uma lei como aquela que recentemente criminalizou os maus tratos a animais? Basta haver letra e dar-lhe o nome de LEI? Isso será o bastante?
A propósito de lei, lembro que a Constituição Portuguesa não deixa margem para dúvidas, quando diz que “A vida humana é inviolável.” E a Constituição, em matéria de lei, é a Lei das leis.
Mas mesmo que olhássemos para a problemática pela perspetiva única da lei, será que bastaria uma revisão da Constituição para depois acomodar a eutanásia?
Eu acho que seria necessário bastante mais do que isso. Seria necessária uma completa revisão dos valores civilizacionais em que se suporta a nossa sociedade.
Por formação e convicção sou contra a pena de morte e pelas mesmas razões também sou contra a eutanásia. A aplicação de uma injeção letal tem a mesma consequência, numa situação ou noutra. Ambas as circunstâncias têm pontos que são comuns (além de outros necessariamente diferentes) como é o caso da decisão poder resultar da vontade de terceiras pessoas.
Também se dá o caso de a eutanásia ser aplicada por vontade do próprio, mas se o legislador, a partir de determinadas idades, impede casamento com comunhão de bens, porque dúvida da qualidade e capacidade da tomada de decisão e se o mesmo legislador também impede que se faça testamento a favor de médico assistente, pela mesma razão, não se entende como é que, numa circunstância em que está em causa a própria vida possa haver quem a queira ver tratada de forma tão ligeira!
Neste caso, o legislador já não dúvida da qualidade da decisão?
Ao se legalizar a eutanásia estamos a falar em atribuir a alguém e legalmente o direito de matar outrem, quebrando aqui uma fronteira moral, ética social, cultural e jurídica, podendo inclusivamente conduzir a uma decadência dificilmente sustentável, caso tal ato seja ainda classificado como tendo natureza médica, o que se poderia traduzir numa ameaça latente sobre todos nós.
Os valores da nossa sociedade estão bem expressos na Constituição Portuguesa. A vida humana é efetivamente inviolável e os valores da nossa sociedade não mudaram assim tanto para que este princípio possa ser quebrado.
Também por essa razão, a dos valores, eu escolho a vida assistida.