Mas será que vivemos num Estado de direito pleno?

Histórias que a Vida Conta

Os procedimentos de expropriação e de indemnização por parte das Infraestruturas de Portugal (I.P.) envergonham o país, os responsáveis pela empresa pública, bem como o próprio ministério da tutela. Configuram práticas de autoritarismo, falta de diálogo, desprezo pelos cidadãos visados. À imagem do ministro Pedro Nuno Santos, caracterizam-se pela arrogância e por uma postura de “quero, posso e mando”.Nada melhor para documentar o que afirmo do que exemplificar mediante a enunciação sucinta de alguns procedimentos inaceitáveis, violadores dos direitos dos cidadãos e que, pela sua repetição e gravidade, não podem deixar de corresponder a uma deliberada estratégia estabelecida no seio das I.P., superiormente avalizada. Ou seja, não se trata de factos isolados, fruto do autoritarismo de um qualquer funcionário investido no seu “pequeno poder”, mas duma prática sistemática e reiterada, determinada desde cima para reduzir e atrasar pagamentos, oferecer indemnizações reconhecidamente insuficientes, intimidar proprietários e rendeiros, violar direitos dos cidadãos – proprietários e arrendatários das parcelas ocupadas e expropriadas.A estratégia implica a adoção, entre outras, das duas seguintes atitudes: 1º: oferecer indemnizações com valores reconhecidamente insuficientes ou mesmo ridículos, quando não verdadeiramente “obscenos”; 2º: não responder às cartas que os interessados dirigem aos Serviços, pedindo informações, esclarecimentos ou propondo alterações às propostas recebidas; 3º: não mostrar qualquer disponibilidade ou efetiva abertura para reuniões com os cidadãos envolvidos; 4º: se e quando se  dignam responder, ignoram olimpicamente as questões concretas levantadas e mantêm, num ato de indizível sobranceria, os valores inicialmente propostos.Encontro uma explicação para estes procedimentos na nossa Beira profunda: as I.P. sabem que, em face dos reduzidos montantes das indemnizações atribuíveis, nenhum proprietário ou rendeiro recorre aos serviços de um Advogado, cujos honorários seriam de montante superior ao valor da indemnização possível. A ética é um valor ignorado.Todavia, a estratégia das I.P. não é substancialmente diferente quer se trate de pequenas parcelas de terreno situadas em regiões de minifúndio (v.g., parcelas expropriadas para a melhoria da Linha da Beira Baixa) ou em propriedades de extensão significativa, gravemente afetadas pelas obras na ferrovia, situadas no Alentejo (caso de expropriações de muito maior vulto para a construção da Linha do Caia). Diga-se, desde já, que não está em causa nem se discute a necessidade de tais medidas expropriativas nem a utilidade social das obras de construção ou de beneficiação na ferrovia. O que se critica com veemência são os métodos, os procedimentos usados pelas I.P. O que não se admite é que, quer se trate de grandes propriedades ou de pequenas parcelas, não se dê uma palavra aos interessados e se pretenda transformar em ato consumado o que mais não é do que uma postura abusiva e injusta de aproveitamento do que são bens alheios. Nem se diga que quem está “do outro lado” são grandes “terratenentes” (seja lá o que isso for). O mesmo silêncio e a mesma falta de contraditório é aplicada a simples rendeiros – na região da Guarda é uso chamar-lhes “caseiros” – gente modesta que ganha o seu pão mourejando de sol a sol, sob um calor tórrido ou ao gelo e à neve, que as I.P. ignoram ou desprezam… Quer isto dizer que não se trata apenas de sanha cega ou ódio vesgo contra o direito de propriedade. É, nua e crua, uma ofensa grave contra os direitos humanos mais básicos que inclui a violação do dever de tratamento correto e justo, civilizado e em tempo, das pessoas afetadas, sejam elas “doutores” ou mais modestas do que a média dos funcionários das I.P…Pergunto: admite-se que se proponha a um caseiro de uma quinta perto da Guarda uma indemnização de 10 euros (repito, dez euros) a título de indemnização pela ocupação temporária de uma parcela com a área de 108m2, “durante o período de 36 meses a contar do início dos trabalhos de realização da obra”? Na verdade, propor “para a ocupação temporária da mencionada parcela” o valor de 10,80 € (dez euros e oitenta cêntimos) é uma proposta verdadeiramente indecente, que envergonha indelevelmente quem a apresenta, ou seja, as I.P. Admite-se que as I.P.  não procedam ao ressarcimento das despesas efetuadas por um rendeiro, à sua própria custa, na execução de obras urgentes para reparação de uma vedação na linha da Beira Baixa, que cumpriam ás I.P., oportunamente avisadas para o efeito, evocado que foi o risco de poder ser transposta por animais ou pessoas invadindo a linha? Ou que nem que, largos meses após, continuem sem resposta as cartas enviadas pelo caseiro, pedindo e documentando as despesas efetuadas? É que é indispensável que as I.P. vistoriem a obra realizada, a fim de corrigirem qualquer erro ou imperfeição, prevenindo, desse modo, a eventualidade de qualquer sinistro na linha. De outro modo, as IP não cumprirão a obrigação de vigilância e de zelo que incide sobre elas. Mas o que fizeram as I.P até hoje? Nada! Nada de nada…  Entendi por isso apresentar uma queixa à Senhora Provedora de Justiça, que já acusou a receção, informando-me da referência que lhe foi atribuída.Porquê, aqui, este relato, à primeira vista tão particular, de tais “desditas”? Porque este é o retrato, que infelizmente se encontra multiplicado pelo país afora, de como a Administração e o Estado retribuem aos contribuintes o zelo com que eles pagam os seus impostos…Na verdade, os Serviços seguem muitas vezes o retrato que lhes chega da tutela. Ora, para quem conhece a folha de serviço e as características pessoais do ministro Pedro Nuno Santos (PNS), não surpreende a sua postura de brigão e provocador – pública e notória desde que (ainda não era então ministro, valha-lhe isso …)afirmou que Portugal se devia negar a pagar a sua dívida colossal de tal jeito que os financeiros alemães “até ficariam com as pernas a tremer”(?!), ou desde que se confrontou numa “justa pessoal de rufiões”, tão deselegante como desnecessária, com o CEO da Ryanair. Logo, não é surpreendente ver replicado este proceder arrogante nos próprios serviços das I.P…Aliás, quem seguiu a entrevista concedida por PNS ao jornalista Miguel Sousa Tavares no Jornal das oito da TVI da passada 2º feira desta semana, terá visto confirmados a personalidade e o temperamento intragáveis do ministro. A entrevista correu-lhe francamente mal. PNS apostou no modelo do provocador imbatível. Ora, independentemente das simpatias que essa sua imagem triunfante de radical de esquerda lhe possa proporcionar junto de umas franjas mais exaltadas, deverá ter em conta que, no estado atual das artes, elas só servem para “dar sabor”… O caminho  mais civilizado, mais dialogante e mais culto – se for capaz de o ser – ainda rende mais nos peditórios (de votos, entenda-se…).Lisboa, 14 de julho de 2021

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